quarta-feira, 6 de julho de 2022

Rapsódias Revisitadas – Os Imperdoáveis

 

Crítica – Os Imperdoáveis

Review Crítica – Os Imperdoáveis
Enquanto gênero cinematográfico o western era comprometido em construir uma visão mítica da expansão para o oeste dos Estados Unidos. Eram filmes que transmitiam como o país foi construído pela coragem e engenhosidade de homens dispostos a domarem esse espaço ermo e selvagem para construir riquezas. Com o tempo, o cinema começou a rever esses mitos. Dança Com Lobos (1990), por exemplo, ponderava que era o homem branco, não a população indígena, os selvagens que destruíam aquela terra. No mesmo clima revisionista, este Os Imperdoáveis, lançado em 1992, dirigido e estrelado por Clint Eastwood, repensa a figura do pistoleiro errante que vaga o oeste caçando malfeitores em busca de justiça e recompensas.

A narrativa é protagonizada por Will Munnny (Clint Eastwood) pistoleiro que abandonou uma vida de violência e morte depois de se casar, mas que aceita um último trabalho para pagar as dívidas de sua fazenda. Abordado por Schofield Kid (Jaimz Woolvet), Munny aceita viajar até uma pequena cidade no Wyoming para matar dois fazendeiros que retalharam uma prostituta. Com a ajuda do antigo companheiro, Ned (Morgan Freeman), Munny parte para o Wyoming ao lado de Kid em busca da recompensa. A pequena cidade, no entanto, é policiada com mão de ferro pelo xerife Little Bill (Gene Hackman).

Aqui já temos a primeira inversão. O xerife é basicamente o vilão da história. Não que Little Bill esteja exatamente errado em querer banir armas e caçadores de recompensa de sua cidade, mas é o modo como ele faz isso e o que ele considera justiça que a trama critica. Já no início do filme, quando as prostitutas são atacadas, vemos que Bill tem um ideal muito restrito do que seria fazer justiça para a violência que acabou de acontecer. Ele trata a prostituta ferida não como um ser humano que teve sua vida e dignidade violentadas, mas como uma propriedade do dono do prostíbulo, tratando a questão como se fosse vandalização de propriedade e sentenciando os culpados a pagarem o dono do estabelecimento. Nada é feito pela prostituta ferida.

Isso evidencia como as agências da lei, desde a fundação dos Estados Unidos, não existem para proteger a população e sim a propriedade privada. Especificamente a propriedade privada daqueles que tem dinheiro. Se olharmos para os faroestes da época de ouro de Hollywood vemos como a maioria dos mocinhos nesses filmes de fato agiam para proteger ferrovias, fazendas ou bancos de ataques de ladrões ou indígenas. Eram fundamentalmente um braço armado do capital privado e é isso que Little Bill representa aqui.

Do mesmo modo, os pistoleiros aqui estão longe de representar a nobreza, coragem e valores elevados que comumente traziam no apogeu do gênero. Aqui Will é visto como uma pessoa de má índole e Eastwood é bastante eficiente em evocar o pesar, o arrependimento e a dor que seu personagem carrega. O ator funciona como uma antítese do tipo de personagem que ele próprio ajudou a tornar célebre no western. Morte e violência não lhe trouxeram glória ou qualquer tipo de catarse, apenas dor. Além disso, esses pistoleiros não estão aqui protegendo “cidadãos de bem”, mas aqueles excluídos e ignorados pela sociedade, como as prostitutas.

O modo desglamourizado com o qual o filme lida com a morte fica evidente nas cenas em que os protagonistas matam os dois fazendeiros. Ao invés dos duelos que ressaltam a astúcia e agilidade dos pistoleiros, temos emboscadas brutais (e até certo ponto covardes), que levam seus alvos a mortes dolorosas e desnecessariamente violentas. Não há um senso de triunfo ou justiça quando vemos esses homens morrerem, o filme apenas exibe uma dor e violência tão cruas que deixa os próprios protagonistas incapazes de lidar com as próprias ações. Não é à toa que Ned deixa o grupo depois que o primeiro alvo é morto e Kid (que nunca matara antes) se entrega à bebida e jura nunca mais matar depois de eliminar o segundo alvo.

A morte dos dois fazendeiros, por sinal, não significa o fim da história ou um retorno ao equilíbrio social prévio à violência cometida por eles. Ao contrário, apenas gera mais violência conforme Little Bill prende e mata Ned, despertando a fúria de Will Munny. Desta maneira, as ações dos pistoleiros apenas ampliam o ciclo de violência daquela cidade, não resolvendo nada e gerando mais morte e dor para os envolvidos. Se em outros faroestes a violência era catártica e um meio para pacificar esse espaço selvagem, aqui ela gera um padrão interminável de mais violência e dor, não havendo nada de heroico nisso.

Eastwood inclusive vai dedicar muito de sua filmografia posterior a repensar as construções míticas do cinema estadunidense e como o país lida com ideais de heroísmo. Seja em sua ponderação sobre violência urbana e trabalho policial em Sobre Meninos e Lobos (2003), seja no modo como um cidadão comum reage às injustiças do cotidiano conforme sua vizinhança se transforma em Gran Torino (2008) ou como a sociedade trata alguém age para fazer a diferença como em Sully (2016) e O Caso Richard Jewell (2019).

Revisando o típico maniqueísmo do western, Os Imperdoáveis tira o verniz de glamour mítico que Hollywood pintou sobre a colonização do oeste para revelar com eloquência a natureza desigual e violenta desse lugar.


Trailer

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