Eu já cheguei a escrever a respeito de como essa segunda parte da sexta temporada constrói de maneira magistral a ruptura entre Jimmy/Saul (Bob Odenkirk) e Kim (Rhea Seehorn), bem como já comentei sobre a primeira metade da temporada, então não irei me repetir. Ao invés disso, irei me concentrar nos episódios que se passam após esse rompimento e acompanham os personagens na linha temporal após os eventos de Breaking Bad.
A escolha de mostrar em preto e branco o presente (ou futuro, dependendo do ponto de vista) de Jimmy vivendo sob o nome de Gene em Nebraska como que baseada na ideia de comunicar de modo imediato que estávamos vendo uma temporalidade diferente. Nas braçadas finais da série, no entanto, parece haver outra intenção: a de que essa é uma existência sem cor, sem graça, para o homem que um dia fora Saul Goodman e conseguia engambelar quem quer que fosse com sua lábia.
Após aplicar um golpe ao lado do filho de Marion (Carol Burnett), Jimmy quebra a própria promessa de parar por aí e monta todo um esquema de roubo de identidade. Ele faz isso para voltar a sentir a emoção que tinha em sua vida prévia. A trama faz um paralelo entre a jornada de Jimmy e a de Walt (Bryan Cranston) ao alternar o presente de Jimmy com o passado em que Saul tem seu primeiro contato com Walt. Se no passado Mike (Jonathan Banks) adverte Saul que Walt era um risco por sua ambição desmedida e amadorismo, no presente vemos Gene por tudo a perder quando se recusa a abrir mão de golpe. Assim como Walt, Gene/Saul/Jimmy encontra a perdição no modo como se deixa levar pelas ambições.
Mais que isso, os flashbacks ao período de Breaking Bad mostram como Saul é o responsável pela ascensão de Walt. Que foi o advogado, contra os conselhos de outros, que decidiu ajudar Walt a construir seu império de crime. Como diz Jimmy no episódio final, provavelmente Walt e Jesse (Aaron Paul) seriam presos em uma semana sem a intervenção de Saul Goodman. Nesse sentido, é a ambição de Jimmy a força motriz de tudo que acontece desde Breaking Bad. Isso nos faz reinterpretar muito do que vimos na série original, do papel de Saul em tudo que acontece e também na hostilidade que Mike tinha em relação a Walt.
Não é apenas Jimmy, porém, que vive uma existência em preto e branco. Quando a série mostra o presente de Kim vemos que ela também leva uma espécie de “vida escondida”. Trabalhando em uma empresa de irrigação, vivendo com um namorado sem graça e se entregando a banalidades entediantes, a impressão é que Kim foi devorada pela culpa e essa existência apática é uma espécie de punição autoimposta por não se perdoar pelo que houve com Howard (Patrick Fabian).
A ideia de que Kim passou todos esses anos com o peso da culpa se torna evidente na cena em que ela desaba a chorar em um ônibus depois de confessar tudo para as autoridades e para a esposa de Howard. Em uma performance magistral de Rhea Seehorn, vemos Kim botar para fora anos de culpa sufocada em um lamurioso pranto soluçante que realmente parece travado na garganta dela há anos.
É curioso que no fim Jimmy seja entregue às autoridades por uma idosa. Não deixa de ser uma rima temática considerando que ele começou sua carreira como advogado defendendo idosos e agora é destruído por ameaçar uma idosa, mostrando o quanto ele se afundou em suas ambições. Inclusive há um momento de hesitação conforme ele avança na direção de Marion com um cabo em mãos para estrangulá-la que nos permite ver brevemente a presença do Jimmy de outrora sob o semblante desesperado de Gene.
O episódio final funciona como uma síntese desse processo de crescimento, degradação e transformação ao avaliar o passado, presente e futuro de Jimmy. Esses três tempos são ilustrados por três flashbacks que lembram os três fantasmas que visitam Ebenezer Scrooge para que ele repense sua conduta no romance Um Conto de Natal de Charles Dickens. Os flashbacks se unem por todos falarem sobre arrependimento e o quanto Jimmy viveu em negação sobre seus arrependimentos de vida.
No primeiro flashback Jimmy conversa com Mike sobre o que ele mudaria se pudesse voltar no tempo. Jimmy fala sobre usar essa possibilidade para ganhar dinheiro, mas Mike voltaria ao dia que aceitou o primeiro suborno, algo que inevitavelmente levou à morte de seu filho e toda vida criminosa que Mike teria depois. O segundo mostra Jimmy/Saul escondido com Walt depois dos eventos de Ozymandias. Aqui vemos Walt como um sujeito prepotente, irascível e que gosta de se sentir superior aos outros. O retrato negativo de Walt talvez venha como mais uma tentativa de fazer uma parte dos fãs (que insistem em defendê-lo) de que sim, ao final de Breaking Bad, Walt tinha se tornado um monstro. Se Walt admite que seu maior arrependimento foi não ter saído da empresa que criaria (embora ele insista na versão de que foi removido), Jimmy mais uma fez se recusa a encarar qualquer senso de consequência por seus atos.
É no terceiro flasback que o senso de arrependimento de Jimmy é explorado. Em uma cena com Chuck (Michael McKean) que se passa antes do primeiro episódio da série vemos Jimmy deixar mantimentos para o irmão. Chuck pede a Jimmy para ficar, talvez a primeira em toda a série que vemos Chuck efetivamente fazendo algum esforço para se conectar com o irmão, mas Jimmy recusa. O livro A Máquina do Tempo, de H.G Wells, nas mãos de Chuck deixa bem evidente que esse é o momento do qual Jimmy se arrepende. Se pudesse, Jimmy voltaria e conversaria com Chuck, talvez assim eles nunca se afastassem, Jimmy não precisaria destruir Chuck nem criar a persona de Saul.
O ato de reconhecer esse ponto de virada na vida do personagem é a chave para entender a guinada que ele dá no final. Mesmo sendo pego, Jimmy consegue usar sua lábia para convencer a promotoria a um acordo extremamente leniente. Ao ouvir, no entanto, que Kim poderia perder tudo em um processo que a viúva de Howard move contra ela, Jimmy termina por sabotar o acordo. Ao confessar tudo que fez e ao assumir sozinho a responsabilidade por Howard, Walt e até mesmo pela morte de Chuck (que não foi crime) Jimmy tenta retornar a esse ponto de seu passado. No flashback Walt diz a Jimmy/Saul que ele “sempre foi assim”, mas a cena com Chuck mostra que não e a confissão de Jimmy revela que ele está disposto a retornar para o homem que um dia foi. É simbólico portanto, que ao fim da confissão ele peça para ser chamado de Jimmy McGill e não mais de Saul Goodman. Saul se foi, Jimmy está de volta.
Se Walt encerrou a própria vida em um gesto que mais revelava o desejo de um último ato de poder do que uma vontade de encarar as consequências, tendo a morte como uma saída para não lidar com os impactos duradouros de tudo que fez, Jimmy escolhe aceitar todas as consequências por suas ações. Condenado a uma sentença praticamente perpétua e levado a um presídio comum, Jimmy vai viver o resto de seus dias pagando pelos atos. Não que seja uma existência completamente sofrida, já que os presos o reconhecem como Saul, fazendo-o uma figura respeitada no local. Mais que isso, ele recebe a visita de Kim na prisão.
Enquanto fumam um cigarro juntos, vemos a cumplicidade e o afeto de outrora nos dois. Com o peso da culpa removido, eles podem retornar a serem quem eram quando tudo começou. Claro, provavelmente nunca ficarão juntos já que Jimmy não deve sair da prisão, mas ele agora é uma pessoa bem diferente do Jimmy que conhecemos no início da série. Ele cedeu as próprias ambições e criou um império milionário, ele perdeu tudo e foi detido pelas autoridades, ao fim encara a verdade sobre si mesmo e consegue extrair disso alguma medida de paz. Crescimento, degradação e transformação.
A temporada final de Better Call Saul encerra de maneira brilhante
a trajetória de uma narrativa que vem sendo construída há treze anos desde Breaking Bad. A série não apenas resolve
muito bem tudo que se propôs a fazer com seus personagens, como lança novos
olhares para a série original. A ideia de uma trama prelúdio é levada a outros
patamares, sendo um trabalho exemplar de estudo de personagem e construção de
universo ficcional.
Nota: 10/10
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