quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Crítica – Marte Um

 Análise Crítica – Marte Um


Review – Marte Um
Com toda a instabilidade política e social que vem se instaurando no Brasil nos últimos anos é natural que a nossa produção audiovisual tente abordar esses temas e vivências. Muitas produções são feitas na urgência de denunciar os problemas do país e acabam descambando em produções excessivamente expositivas em que os personagens conversam como se estivessem dando uma aula ao espectador. Esse não é um problema de Marte Um, dirigido por Gabriel Martins. Como é recorrente nas produções da Filmes de Plástico, o olhar afetuoso e naturalista para a realidade brasileira se mostra muito mais eficiente em transmitir a experiência sensível das alegrias e dificuldades do cidadão do que discursos empostados.

A trama segue uma família humilde na região de Contagem, em Minas Gerais. O patriarca Wellington (Carlos Francisco, de Bacurau) trabalha como porteiro em um prédio de luxo em Belo Horizonte. Tércia (Rejane Faria) trabalha como diarista. Eunice (Camilla Damião) é a filha mais velha e pensa em sair de casa para morar com a namorada. Devinho (Cícero Lucas) é um pré-adolescente que sonha em integrar uma missão tripulada à Marte, contrariando o desejo do pai de que ele se torne um jogador de futebol. Depois das eleições de 2018, o cotidiano da família começa a mudar.

A força do filme reside no modo como ele constrói um senso de cotidianidade para seus personagens. A impressão é que não estamos assistindo personagens performando para a câmera, mas acompanhando o cotidiano de pessoas reais que, como nós, tem sonhos, desejos, ansiedades e problemas. Dentro das dificuldades da vida na periferia de uma grande cidade também há espaço para sonhos, diversão e amores, a exemplo da cena de sexo entre Eunice e a namorada ao som de Nosso Apartamento de Emílio Santiago.

Essas vivências vão desnudando a realidade social e política do país sem que se precise a recorrer a exposições inorgânicas sobre os problemas vividos. A cena em que Wellington e Tercia conversam sobre as contas da casa e tentam decidir o que cortar do orçamento impacta justamente por parecer uma conversa real que muitos de nós tivemos em nossos lares ao longo dos últimos anos. Não há um grande discurso sobre como está difícil viver nesse país, mas ainda assim o filme nos mostra, sem precisar dizer, como muitos de nós deixaram de viver, cortaram lazer, gastos estéticos e outros supérfluos, apenas para sobreviver e garantir um mínimo necessário para comer e ter um teto sob a cabeça.

Do mesmo modo, os diálogos e interações entre Wellington e os moradores de classe alta do prédio em que ele trabalha revelam o desequilíbrio com o qual as classes mais abastadas tratam as mais humildes. Wellington é costumeiramente requerido de cuidar de tarefas pessoais dos moradores, como molhar plantas ou alimentar pets, atividades que vão além do escopo de seu trabalho e para o qual ele não é remunerado, recebendo apenas alguns “presentes” como farinha ou coisas de baixo valor como retribuição.

Apesar da dedicação em fazer muito mais do que designa sua função, Wellington é sumariamente demitido quando um descuido dele causa prejuízos a uma moradora. Descartado como se não fosse não nada apesar de todo o discurso de que ele é essencial para o prédio. Ou seja, a elite quer que o pobre faça tudo por ela, trabalhe em funções pelas quais não recebe, mas joga fora essas pessoas como se não tivessem valor no primeiro inconveniente.

Mesmo em toda a dificuldade, o olhar de Martins nunca reduz esses personagens à sua classe social ou suas vidas ao sofrimento. Há também muito espaço para sonho, para esperança, principalmente no arco de Deivinho. O interesse do garoto pela ciência representa um ideal de futuro, com a busca pelas estrelas e colonização de outros planetas servindo de metáfora para o desejo de condições melhores de vida. O final, com a construção de um telescópio improvisado com coisas que encontrou nos pertences do avô não apenas revela o otimismo em relação à capacidade das novas gerações construírem (literal e metaforicamente) um futuro, mas como esse futuro é também uma conquista geracional, fruto do esforço de avôs, pais, etc. Não importam os retrocessos, não importa como determinados governos queiram precarizar ou descartar as vidas dos mais pobres, os sonhos de futuro construídos ao longo das últimas gerações não vão ser abandonados.

Com ternura e sinceridade, Marte Um é um retrato sensível do cotidiano de famílias periféricas vivendo em um momento de transformação social e pessoal.

 

Nota: 9/10


Trailer

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