A narrativa acompanha O.J (Daniel Kaluuya) um jovem treinador de cavalos que prepara animais para aparecerem em filmes. Quando seu pai morre em circunstâncias misteriosas, O.J deseja tocar adiante o negócio da família enquanto que sua irmã Emerald (Keke Palmer) quer vender o rancho. Antes de tomar qualquer atitude, no entanto, ambos notam o fenômeno estranho que provavelmente matou seu pai: um estranho disco voador nas redondezas da fazenda. Os irmãos então decidem encontrar um jeito de filmar e provar a existência do objeto.
É possível pensar como a premissa está fundamentada no desejo e no prazer de olhar, algo que está na base do cinema em si. As tentativas de filmar o objeto e descobrir o que é ponderam sobre a centralidade do olhar e como as coisas só tem valor e sentido na medida que são capturadas por nossos sentidos. Os irmãos sabem que só acreditarão neles com imagens e sabem que só podem extrair valor da história se tudo for bem filmado.
Nesse sentido há também uma reflexão sobre como a história é transformada em mercadoria e, nesse processo, é transformada, suavizada romantizada. Isso fica evidente no modo como o caubói Jupe (Steven Yeun) transformou em comércio o momento mais traumático de sua vida. Conforme ele conta em um tom divertido sobre um episódio violento de sua infância em um museu que tem até figurinos manchados de sangue, a montagem corta para vislumbres da face aterrorizada de sua versão infantil.
A ideia de que a história que nos é vendida é muito mais brutal do que a história real encontra eco na narrativa que os irmãos contam para vender seu negócio. O filme parte de um dado real, a de que a primeira pessoa captada em uma imagem em movimento foi um jóquei negro. Embora saibamos o nome de Muybridge, que conduziu o experimento óptico, e até o nome do cavalo, o nome do jóquei se perdeu no tempo.
Com esse apagamento, o lugar de pioneirismo da população negra é esquecido. Os irmãos, portanto, empreendem um duplo movimento. De um lado ao contarem isso também remetem a como o relato histórico é reduzido a algo que pode ser comercializado, mas também clamam de volta esse lugar central do negro na produção de imagens e imaginário que lhes foi negado. É, talvez, essa ideia de ocupar o pioneirismo que lhes foi negado que move a decisão dos irmãos em filmar o estranho objeto voador. Não é à toa, por sinal, que uma das últimas imagens do filme seja a de O.J em cima de um cavalo, como que fechando o ciclo do homem negro retornar ao lugar de protagonismo no cinema colocado pelo experimento de Muybridge e que foi apagado do discurso histórico do cinema.
Daí voltamos à questão do olhar e como o filme trabalha isso em relação à criatura. A ideia do ato de olhar ser potencialmente fatal e ainda assim muitos não resistirem remete ao prazer escopofílico do ato e si e também ao ímpeto humano de conhecer o desconhecido, o que lhe é vedado. Nesse sentido há aqui uma critica a como esse olhar é banalizado em um entretimento rasteiro a exemplo do parque fuleiro empreendido por Jupe ou mesmo sua tentativa de transformar a criatura em espetáculo. O passado de Jupe, inclusive, serve para entendermos o porquê dele tentar aquilo, já o olhar que ele troca com o macaco de sua sitcom é um dos poucos momentos em que olhar uma criatura não rende uma agressão a quem olha.
Considerando o quanto os dois últimos filmes de Peele já tiveram suas ideias reproduzidas em filmes inferiores, é compreensível aqui que ele tenha criticas a redução do olhar a um meio de ganhar dinheiro ou ao estado da indústria do cinema. O horror que acomete os personagens é o medo de serem devorados e posteriormente terem seus restos regurgitados dos céus pela misteriosa criatura. De certa forma é como se Peele também ponderasse sobre seu próprio estatuto como realizador e o modo como suas criações são engolidas e regurgitadas pelas engrenagens da indústria (um pensamento que se conecta à citação bíblica no começo do filme). Peele, no entanto, nunca desdenha da natureza espetacular do audiovisual e do prazer que pode ser extraído disso, criando sequências eficientes de tensão conforme os personagens lidam com o estranho objeto.
A música composta por Michael Abel contribui para o clima perturbador de ameaça e o contraste os momentos de silêncio e os bizarros sons emitidos pelo objeto dão a impressão de algo verdadeiramente fora do nosso mundo. O mesmo pode ser dito do design da criatura quando ela é finalmente revelada e somos defrontados com algo de difícil definição que poderia muito bem ter sido imaginado por H.P Lovecraft.
A performance de Daniel Kaluuya é discreta (como em boa parte de Corra!), com O.J agindo de modo estoico mesmo diante das situações mais bizarras, mas permitindo que percebamos a tensão contida por baixo desse pragmatismo. Ele pode não estar explodindo de horror, no entanto, pelo seu olhar percebemos como ele está implodindo de sentimentos. Keke Palmer oferece um divertido contraponto, como uma garota que está sempre em movimento, sempre gesticulando revelando sua personalidade de estar constantemente em busca de um meio para ganhar dinheiro.
É curioso como um filme pode crescer conforme pensamos mais sobre ele. Quando os créditos subiram ao final da sessão de imprensa Não! Não Olhe! confesso que não fiquei exatamente impressionado. Parecia o mais fraco dos três longas de Jordan Peele. No percurso de escrever sobre ele e refletir a respeito das proposições que ele constrói, no entanto, comecei a perceber as várias camadas que Peele colocou no universo criado aqui e a riqueza de leituras que esses eventos evocam. Quanto mais eu ia puxando os fios temáticos e simbólicos, mais eu via como eles se conectavam e como ele tinha uma complexidade no mesmo nível de Corra! (2017) ou Nós (2019) Certamente não consegui dar conta de toda essa riqueza em apenas um texto de pouco mais de mil palavras e há muito mais a se pensar sobre o filme, principalmente em novas apreciações.
Ponderando sobre o ato de olhar
inerente ao cinema, a mercantilização do relato histórico e o lugar do negros
no pioneirismo do audiovisual Não! Não
Olhe! equilibra reflexão e espetáculo de um modo que poucos filmes
conseguem.
Nota: 9/10
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