O Brasil produz cinema desde o final do século XIX, mas só na década de 1970 que tivemos uma pessoa negra ocupando pela primeira vez a função de diretor. O pioneirismo coube a Zózimo Bulbul, ator com uma longa trajetória no cinema tendo trabalhado com diretores importantes do Cinema Novo como Glauber Rocha e Leon Hirszman. Talvez tenha sido justamente o prestígio angariado em sua trajetória como ator que permitiu a ele abrir caminho para sua estreia como diretor no curta-metragem Alma no Olho lançado em 1974.
Construir uma longa trajetória antes de chegar na direção acabou sendo um percurso comum entre muitos realizadores negros e negras, como Adélia Sampaio, primeira mulher negra a dirigir um filme no Brasil. Até chegar à função de diretora Adélia trabalhou como continuísta, maquiadora, câmera, montadora e produtora até dirigir o curta Denúncia Vazia em 1979.
Todo em preto e branco, Alma no Olho se mostra inicialmente um experimento do olhar. Uma tentativa de olhar corpos negros celebrando sua beleza, suas formas, seus traços característicos. Não é à toa que a câmera passeia pelo corpo do ator em planos detalhe que chamam atenção para sua boca, sorriso, pelos do corpo e outras partes. É uma maneira de observar pessoas negras diferente do que o cinema brasileiro costumava a fazer até então, constantemente representando a população negra em funções subalternas ou personagens estereotipados, tratando-os com um olhar exotizante ou ridicularizante. O cineasta Joel Zito Araújo chegou a explorar o tratamento que a população negra recebe na dramaturgia brasileira no documentário A Negação do Brasil, de 2000.
Aqui, portanto, o olhar da câmera de Zózimo Bulbul se converte como um espaço de emancipação e poder, transformando a maneira como o cinema observa os corpos negros projetados na tela. Nesse sentido, o uso de Kulu Sé Mama de John Coltrane como trilha musical do curta serve a propósitos similares de celebração da cultura da afro diáspora. Composta por Juno Lewis, a canção é um longo poema de cunho autobiográfico no qual Lewis refletia sobre o orgulho de seus ancestrais e seu senso de tradição. Além da letra em um dialeto africano, a música incorpora instrumentos percussivos do continente ao lado da típica instrumentação de jazz costumaz nas obras de Coltrane, misturando assim diferentes tradições de música negra.
Para além de pensar questões relacionadas ao olhar, é um curta que tenta sintetizar a experiência da diáspora. O personagem principal começa alegre, dançante, até ser inesperadamente colocado em grilhões e preso a um espaço apertado. A alegria é deixada de lado e o protagonista é tomado por confusão e desespero com essa nova situação, como provavelmente se sentiram aqueles trazidos à força para o trabalho escravo nas colônias das Américas. Conforme a narrativa progride, o protagonista tenta encontrar maneiras de sobreviver até inevitavelmente romper seus grilhões como um prenúncio da emancipação do povo negro. É um ótimo exercício de economia narrativa que o filme consiga dizer tanto, com tanta intensidade tendo apenas um ator em cena, sem diálogos, diante de um cenário vazio.
Alma no Olho é, portanto, um marco do cinema brasileiro, que
permanece um exame poderoso sobre olhar, identidade e subjetividade.
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