terça-feira, 1 de novembro de 2022

Rapsódias Revisitadas – Bamako

 

Análise – Bamako

Review - Bamako
Lançado em 2006 e dirigido pelo mauritano Abderrahmane Sissako, Bamako reflete sobre as consequências da colonização sobre países africanos ainda hoje e como os processos de globalização deram um novo verniz à exploração colonial. A trama se passa em Bamaco, capital de Mali. Mele (Aissa Maiga) é uma cantora que ganha a vida se apresentando em bares e restaurantes. Seu marido, Chaka (Tiecoura Traore), está desempregado e o casamento deles está em crise. Em meio a isso, na praça que fica no centro de onde moram acontece um julgamento. No tribunal montado a céu aberto representantes do Mali processam o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional por impedirem o desenvolvimento dos países africanos.

Há uma escolha consciente de Sissako em situar o julgamento numa praça de um espaço periférico. Essa decisão primeiramente deixa evidente o caráter lúdico e fabulizante desse julgamento, ou seja, não há uma intenção de tratar isso como se fosse um procedimento real, mas como uma metáfora para a discussão das angústias de países como Mali diante de órgãos internacionais.

De certa forma também funciona como uma paródia de filmes de tribunal. Produções hollywoodianas como Filadélfia (1993) ou O Júri (2003) tratam o tribunal como esse espaço sério, solene, racional, em que a justiça sempre prevalece. Aqui ao construir tudo como um grande improviso, Sissako nos faz pensar como todo esse ideal de justiça não passa de uma grande farsa, um teatro de poder que dá a impressão de que algo está sendo feito, quando não está. Isso fica visível no modo como Mele, Chaka e os demais que moram no entorno simplesmente continuam suas vidas enquanto tudo acontece na praça. Mele pede para um dos guardas amarrar seu vestido, crianças passam brincando e uma mulher tira água de um poço enquanto argumentações são feitas. É como se todo esse debate sobre colonialismo não estivesse alcançando a população.

Durante as argumentações, ouvimos como os órgãos financeiros internacionais sufocam as finanças de países africanos obrigando essas nações a destinarem boa parte de seus orçamentos ao pagamento de dívidas, ignorando que os países do norte global é que tem uma dívida com as nações colonizadas, construindo suas riquezas da exploração de recursos da África, Ásia e América Latina. Nações como Mali são forçadas a pagar milhões em dívidas por ano, deixando de investir esse dinheiro em melhorias para saúde, educação ou saneamento.

No processo cidadãos comuns também são ouvidos, deixando claro que apesar de toda a suposta racionalidade e pragmatismo dos órgãos internacionais, as populações africanas seguem sendo exploradas, maltratadas, deixadas a míngua e tratados como seres de segunda categoria. Ouvimos como essas estruturas de poder afetam um fazendeiros, professores, imigrantes e até políticos locais. A cena mais poderosa, no entanto, reside no canto lamurioso de um líder religioso ancião, cuja voz evoca toda a dor e agonia causada pelo isolamento e negligência das potências mundiais com os mais pobres. Os mecanismos podem ter mudado, mas o controle colonial demonstra seguir o mesmo.

A ideia de que ainda vivemos em uma estrutura de dominação colonial é ainda reforçada pelos argumentos da defesa dos órgãos internacionais. O raciocínio deles é basicamente o de que a África não prospera devido à incompetência e corrupção presente nesses países. As falas dessa natureza reproduzem a visão colonialista de inferioridade dos povos colonizados, que precisam ser civilizados e tutelados pelos colonizadores, sendo que nunca serão tratados como iguais por eles. Ideias que Frantz Fanon já tinha explorado em Os Condenados da Terra e que aqui ficam explícitas no discurso da defesa, colocando as populações africanas como condenados ao fracasso por suas limitações intelectuais e morais, deixando de implicar as consequências da violência colonial na situação dos países explorados.

Com uma estrutura inventiva e uma direção que transita bem entre o drama e a ironia, Bamako é uma contundente reflexão sobre a permanência dos processos coloniais.


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