Porque Hollywood ou a Europa podem fazer filmes celebrando suas identidades nacionais e construindo uma versão de seu relato histórico em que seu povo é sempre o herói, mas populações colonizadas, como a da Índia, não podem fazer o mesmo? Imagino que muito do que causou essa recepção do filme se relaciona com o incômodo das populações europeias e de outros países hegemônicos em se enxergarem como vilões. Muito da história da colonização foi construída da perspectiva europeia e nela eles se colocam como bravos descobridores que civilizaram ou dominaram as selvagens e atrasadas populações dos territórios conquistados.
Filmes como RRR, no entanto, desafiam essa percepção e mostra os europeus como selvagens violentos e isso certamente desafia a cognição de populações europeias que não se acostumaram a pensar colonização como violência. É difícil não olhar para todo o debate ao redor do filme e não pensar no livro Pode o Subalterno Falar? de Gayatri Spivak que discute justamente as questões de representação das populações colonizadas dentro do discurso ocidental (ou ocidentalizado).
Mas, enfim, vamos ao filme propriamente dito. A trama se passa na Índia pré independência e gira em torno da amizade entre Bheem (NTR) e Raju (Ram Charan Teja). Bheem vai à capital em busca de uma garota de sua vila que foi levada por um casal de oficiais britânicos. Raju é um implacável policial incumbido representante da coroa britânica, Scott Buxton (Ray Stevenson), para encontrar Bheem. Raju e Bheem se conhecem ao salvar um garoto de um acidente de carro e logo se tornam amigos, mesmo sem saber que o destino os colocará em oposição.
A narrativa mistura melodrama, ação e musical, transitando muito bem entre esses gêneros. A ação é grandiloquente e exagerada, mostrando Bheem e Raju como figuras com força e agilidade quase que sobre-humanas. Mesmo com os excessos, a ação consegue empolgar pelo modo enérgico com o qual são filmadas e por privilegiarem planos mais longos que exibem bem as habilidades marciais dos protagonistas.
Os números musicais são igualmente intensos e grandiosos, muitas vezes servindo como marcador cultural da identidade de seus personagens e também como celebração dessa cultura. Isso fica evidente no segmento em que Bheem e Raju são convidados a uma festa por Jenny (Olivia Morris), interesse romântico de Bheem, e são criticados pelos jovens ingleses do local pela falta de refinamento.
Um dos ingleses comenta que os indianos são primitivos e não conhecem danças refinadas como os britânicos, que dançariam tango, swing e flamenco (nenhuma delas inventada por britânicos, denotando a apropriação desse povo). Nesse momento Raju, pede à banda da festa que toque ritmos regionais, iniciando com Bheem um longo número musical. Ao invés de tentar aprender as danças dos britânicos, os protagonistas mostram seu apuro como dançarinos a partir de sua própria cultura, se comunicando nos seus próprios termos e valorizando sua identidade ao invés de ceder aos colonizadores e tentar aprender as danças “deles” para provar seu valor.
A ideia de que não é possível vencer a colonização jogando o jogo deles fica ainda mais explícita no arco de Raju. Se inicialmente ele parece um policial truculento de mentalidade colonizada, aos poucos descobrimos que ele tem seus próprios planos revolucionários de roubar as armas do exército britânico e dar para a população indiana. Ao longo de sua amizade com Bheem, no entanto, ele entende como símbolos nacionais podem ser mais poderosos em estimular uma revolução do que apenas armas. Lógico, o filme não é ingênuo de achar que vontade apenas basta para enfrentar a opressão, fazendo Raju levar a cabo seu plano de levar armas, porém, o personagem abandona sua indumentária e armamento britânicos em prol de um arco e flecha e vestes mais tipicamente indianas para inspirar seu povo.
Os ingleses são predominantemente retratados como indivíduos que veem os indianos como seres de segunda categoria, abaixo de humanos e sem valor. Isso fica evidente no discurso de Braxton de que os indianos são tão baixos que não vale nem a pena gastar uma bala para matá-los, sendo mais eficiente matar os indianos com outras ferramentas. Do mesmo modo, a esposa de Braxton não vê problema em tratar crianças indianas como mercadoria, levando para casa crianças de que gosta em troca de algumas moedas para as mães. Eles reproduzem o discurso supremacista vigente na época (e de certa forma reproduzido até hoje) dos europeus como civilizados e superiores enxergando as populações nativas de suas colônias como primitivas, estúpidas e atrasadas por não compartilharem de suas visões mundo e cultura.
Afinal, a dominação colonial não é apenas uma dominação física, de ocupação de território, é também uma ocupação das mentes, fazendo o colonizado ver o mundo da perspectiva do colonizador e nunca entender sua condição de subalterno, buscando sempre uma aceitação do colonizador que nunca virá porque eles não verão os colonizados como iguais. Bacurau (2019) mostrou isso muito bem na cena em que a personagem de Karine Teles diz “somos iguais a vocês” para um grupo de gringos e aqui vemos isso no arco de Raju. Apesar de ser o mais eficiente membro da polícia, ele é sempre preterido em promoções por colegas brancos, mostrando que não importa o quanto ele se esforce, o reconhecimento dos colonizadores não virá facilmente. Nem todos os britânicos, no entanto, são tratados como vilões, com Jenny mostrando que eles também podem ser aliados, evitando que as coisas caiam em um maniqueísmo muito simples.
Assim, RRR: Revolta, Rebelião, Revolução é um intenso épico sobre a
importância de ser erguer contra a violência colonial, que envolve pelo seu
senso de espetáculo e pelas reflexões que traz sobre os processos de
colonização e identidade nacional.
Nota: 9/10
Trailer
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