quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Crítica – Tár

 Análise Crítica – Tár

Quase quinze anos depois de seu último filme (o excelente e pouco visto Pecados Íntimos), o diretor Todd Field retorna às telas com Tár um filme que muitos podem reduzir ao um mero olhar sobre “cultura do cancelamento”, mas tem muito mais camadas do que isso. Tal como um maestro em uma orquestra Tár é sobre tempo, estar ciente do tempo, medir o tempo, controlar o tempo e o que acontece quando alguém é incapaz de se relacionar adequadamente com o tempo ao seu redor.

A trama acompanha a maestra Lydia Tár (Cate Blanchett), uma regente com uma brilhante carreira na música clássica e primeira mulher a dirigir a filarmônica de Berlim. Devotada a compositores clássicos como Mahler e Bach, Lydia está prestes a fazer história com sua vindoura gravação da quinta sinfonia de Mahler, no entanto as indiscrições pessoais de Lydia começam a surgir e a maestra vai aos poucos perdendo o controle do mundo a sua volta.

De certa forma Lydia é uma pessoa fora do tempo presente. Seus ídolos estão todos no passado e são todos homens, ela se recusa a olhar para a arte com qualquer viés sociológico ou político. Para ela as críticas ao eurocentrismo da música clássica e as condutas ou pensamentos de compositores como Bach de nada servem. O texto de Todd Field nunca adere à ideia de que devemos “cancelar” a música clássica por sua perspectiva branca eurocêntrica ou por condutas questionáveis de seus compositores, no entanto, a trajetória da narrativa opera para mostrar o equívoco do ponto de vista de Lydia em considerar que a arte existe desconectada de seu contexto de produção e de recepção. É um tema espinhoso e o filme o trata com essa devida complexidade, evitando respostas fáceis.

A protagonista também parece alheia a toda discussão contemporânea sobre assédio, não tendo qualquer problema em usar sua posição de poder como professora e diretora de orquestra para assediar as mulheres que lhe apetecem, dando favores e visibilidade às jovens musicistas que cedem aos seus avanços e arruinando as carreiras daquelas que recusam ser usadas por ela. A personagem, portanto, se comporta como muitos grandes produtores e gestores da arte de outrora, tendo sua posição de poder e prestígio como escudo para se manter impune.

Lydia é uma personagem complexa e Blanchett faz jus a essa multiplicidade de camadas. Na longa entrevista que abre o filme, a atriz demonstra a erudição e amor de Lydia pela música clássica, impressionando pela naturalidade e autoridade com a qual discorre sobre questões técnicas de música de concerto em planos longos e com pouquíssimos cortes, o que mostra que a atriz de fato dominou o texto ao ponto de fazer ele soar completamente espontâneo saindo de sua boca em takes tão longos.

O filme nos faz sentir o peso do pioneirismo de Lydia no mundo da música e o quanto ela é uma artista brilhante. Por outro lado deixa muito evidente o quanto ela pode ser implacável com quem cruza seu caminho e como ela consegue manipular com certa facilidade as pessoas ao seu redor, usando-as ao seu bel prazer. Um exemplo é sua assistente, Francesca (Noemie Merlant, de Retrato de Uma Jovem em Chamas), cuja admiração profissional e pessoal por Lydia é usada pela maestra como um meio de reduzi-la a um capacho. Prometendo à jovem cargos em sua orquestra que ela não tem qualquer interesse em dar a Francesca, Lydia manipula a admiração dela para mantê-la por perto como ajudante pessoal e amante casual.

Se no início Lydia parece em completo controle, fazendo todos ao seu redor dançarem conforme seu ritmo, ao poucos as consequências de suas ações vão se acumulando e as diversas acusações de abusos e exposição de suas indiscrições em redes sociais. A contemporaneidade que Lydia tanto rejeita é a responsável por sua derrocada. Incapaz de ditar o ritmo de uma melodia que não entende, a protagonista começa a perder o controle de si mesma e deixa os piores impulsos de seu ego guiarem suas ações. Um exemplo disso é visto na cena em que os vizinhos batem na sua porta para comentar da música e Lydia imediatamente supõe que é um elogio apenas para ficar indignada quando eles lhe dizem que o som dos ensaios pode desvalorizar o apartamento que estão pensando em vender.

Imediatamente vemos como o semblante da personagem muda de uma falsa modéstia para uma furiosa indignação, como se não aceitasse que lhe dissessem que sua música é qualquer coisa que não um maná dos céus, tomando a indagação dos vizinhos como uma ofensa imperdoável. Iniciando uma provocação com um acordeão enquanto grita e xinga os vizinhos, Lydia deixa evidente o quanto ela pode ser destrutiva quando as coisas não vão do jeito que ela deseja. Tudo isso caminha num crescente de tensão até ela irremediavelmente implodir a própria carreira.

Seria possível discutir o desfecho e como a ideia de reger música para games ser tratada como um “fundo do poço” repete um certo elitismo anacrônico em relação ao estatuto dos jogos eletrônicos enquanto forma expressiva. Considerando, porém, que Lydia é uma ególatra de formação clássica que põe os cânones da música clássica europeia acima de qualquer outra coisa, terminar regendo música para games em um país asiático deve ser uma espécie de inferno pessoal para ela. 

Esse final não é a pior coisa que Todd Field pensou que poderia acontecer com Lydia, mas o que ela própria imaginaria ser o pior. Se no início do filme a vemos com uma tribo de nativos, aprendendo seus ritmos para levar para a europa, como uma forma de colonização e controle, aqui é ela que está sob controle. Tár está reduzida a uma espécie de metrônomo humano, incapaz de controlar o tempo das coisas ao seu redor e sendo controlada justamente por pessoas que ela orgulhosamente julgava estarem muito abaixo de si própria.

Tár apresentando um complexo estudo de personagem ponderando sobre as relações entre arte e tempo com uma direção segura de Todd Field e uma excelente performance de Cate Blanchett.

 

Nota: 10/10


Trailer

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