Produzida por Craig Marzin, responsável pela minissérie Chernobyl, a série segue de perto a narrativa do primeiro jogo. Em um mundo pós-apocalíptico no qual a humanidade foi dizimada por um fungo que infecta as pessoas e as transforma em predadores irracionais, acompanhamos a jornada de Joel (Pedro Pascal). Sobrevivendo como contrabandista, Joel é encarregado de levar em segredo a jovem Ellie (Bella Ramsey) em uma viajem através dos Estados Unidos para uma base dos Vaga-Lumes, grupo de revolucionários que tenta se opor ao repressivo regime vigente. A importância de Ellie reside no fato dela ser imune ao fungo e pode ser a chave para uma vacina.
A série é uma adaptação bastante eficiente não por se manter fiel ao material, embora faça isso e muitas cenas sejam recriadas palavra a palavra e plano a plano, mas pelo modo que se afasta do material para aprofundar nosso entendimento daquele universo e explorar histórias que no jogo eram restritas a anotações ou comentários passageiros. Um exemplo são as cenas que abrem os dois primeiros episódios que dão o tom da severidade da infecção do fungo poderia ter no mundo. O modo como o cientista vivido por John Hannah diz “nós perdemos” na abertura do primeiro episódio ou o horror no rosto da cientista da Indonésia conforme ela sugere que os militares bombardeiem a cidade inteira nos faz entender o nível de pânico que havia no mundo.
Do mesmo modo, histórias secundárias como a de Bill (Nick Offerman) e Frank (Murray Bartlett, da primeira temporada de White Lotus) ampliam nosso entendimento de personagens secundários e dão a eles mais complexidade. Nesse caso específico, testemunhamos uma história de amor que desabrocha no meio do apocalipse, nos dando vislumbres de uma felicidade possível. Um encaminhamento mais interessante do que no jogo, no qual a relação deles apenas ressaltava o mesmo pessimismo com o apocalipse do que quaisquer outras subtramas.
A complexidade que a trama da aos seus personagens deixa evidente como esse é um espaço de pouca clareza moral, com cada um fazendo o que acredita ser certo para sobreviver. Ainda assim, a narrativa nos mostra como os piores instintos do ser humano levam a melhor até sobre pessoas bem intencionadas, botando a perder possibilidades de progresso. Isso fica evidente no arco de Kathleen (Melanie Lynskey), no qual mesmo depois de expulsar a FEDRA e tomar o controle de sua cidade, abrindo caminho para uma reconstrução no qual as coisas possam melhorar para todos, acaba pondo tudo a perder por insistir em perseguir uma vingança pessoal cujo único ganho seria sobre seu ego.
Ao mesmo tempo, a narrativa nos lembra que algumas pessoas podem estar além de qualquer redenção e que já abriram mão de sua humanidade para o apocalipse, como o caso de David (Scott Shepard), que é uma figura ainda mais assustadora do que no jogo. Um canibal que sente um prazer sádico em alimentar pessoas com a carne de seus entes queridos sem que elas saibam e em usar da religião para manter um controle severo sobre a comunidade que comanda, David se sente perfeitamente bem nesse ambiente selvagem.
Se no game ficava apenas subentendido que o interesse de David por Ellie derivava do fato dele ser um predador pedófilo, aqui isso é explicito e deixa o vilão ainda mais assustador quando ele salta sobre a garota e declara o prazer que sente em vê-la resistir, o que apenas aumenta a catarse de ver Ellie eliminá-lo brutalmente, ainda que entendamos o peso disso na garota.
Sob certo aspecto a narrativa é mais sobre como as facetas mais sombrias da humanidade são piores do que qualquer pandemia ou monstro e que mesmo boas intenções podem levar por caminhos de horrores. Esse senso de perdição e melancolia é ressaltado pela trilha musical composta por Gustavo Santaolalla (que compôs a música dos games) na qual predomina o uso de violão com acordes contemplativos e ritmo bastante deliberado. A narrativa, porém, sempre encontra momentos de calor humano ou de pura beleza, a exemplo da cena da girafa perfeitamente recriada do jogo, para nos manter com uma fagulha de esperança.
Claro, nada disso funcionaria sem uma dinâmica sólida entre Joel e Ellie, algo que Pedro Pascal e Bella Ramsay entregam com louvor. Pascal ilustra com habilidade a natureza traumatizada de Joel e o modo como ele tenta manter sob controle a crueldade pragmática que provavelmente é a razão dele ter sobrevivido tanto mesmo fazendo coisas tão perigosas. Do mesmo modo, o ator nos faz perceber como a rejeição e distanciamento em relação a Ellie funcionam como o mecanismo de defesa para que ele não viva com ela ou trauma que teve com a filha. Conforme se aproxima da garota, ele se apega a ela como uma chance desesperada de redenção, um desespero que só o torna mais perigoso para os adversários.
De maneira semelhante, Ellie usa o sarcasmo e modos abrasivos para evitar que as pessoas cheguem perto demais. Tendo perdido ou sido abandonada por todas as pessoas com quem já se importou, a garota prefere não se aproximar de ninguém a arriscar se magoar novamente. Aos poucos os dois vão se aproximando, inicialmente por gratidão conforme salvam um ao outro repetidas vezes, mas logo isso se torna uma dinâmica de pai e filha sendo impossível não sentir um afeto genuíno quando Joel se refere a Ellie como “baby girl” no penúltimo episódio.
É um momento que consolida o laço inquebrável que se formou entre os dois, com Pascal e Ramsay vendendo todas as emoções da cena. É esse momento, por sinal, que basicamente sela a decisão final de Joel em relação aos Vaga-Lumes quando descobre que Ellie precisaria ser morta para que um antídoto pudesse ser criado.
Antes de falar do final, porém, preciso comentar sobre as cenas de ação. Muito se falou ao longo da temporada de como a ação é menos presente do que nos jogos. Pessoalmente não vejo isso como um problema, é uma questão de adaptar algo de uma mídia para outra. Nos games faz sentido termos sequências de combate a cada vinte minutos para manter o jogador envolvido e se sentir parte necessária de carregar os personagens ao longo de suas tramas. Na televisão isso não é necessário e encher os episódios de ação tiraria espaço para o necessário drama e construção de personagem que a série precisaria para deixar o espectador imerso em seu universo.
Dito isso, no entanto, devo dizer que a decisão de abreviar o tiroteio final no hospital tira muito do impacto da escolha extrema de Joel. Ao cortar rapidamente e usar elipses temporais que simplesmente mostram os cadáveres no chão, a narrativa desumaniza os mortos e torna tudo um pouco menos duro e mais fácil de aceitar. Precisaríamos ver cada morte, olhar o terror no rosto de cada vítima conforme Joel as mata apesar de estarem teoricamente do mesmo lado ou de se renderem. Precisaríamos disso para ter a plena consciência de que o personagem não está matando saqueadores além de qualquer redenção, que boa parte das suas vítimas são pessoas bem intencionadas e talvez até inocentes em relação à morte de Ellie.
Sim, ainda é um desfecho assombroso que leva às últimas consequências o sentimento paternal e traumas passados de Joel. Alguém tão marcado pela perda que está disposto a cometer um genocídio só para não sentir a dor de perder outra filha. Ainda assim fica a impressão de que o episódio final passa muito rápido por todo esse segmento para que ele tenha o devido impacto. Considerando que já foi um final divisivo nos games fico curioso para ver como vai ser a reação do público da série, já que muita gente não conhece os jogos.
Desta maneira, The Last of Us é um excelente exemplo de
como uma boa adaptação deve ser, mantendo o espírito do material original ao
mesmo tempo em que aprofunda de maneira consistente nosso entendimento sobre
esse universo.
Nota: 9/10
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