quarta-feira, 5 de abril de 2023

Crítica - Atlanta: 3ª Temporada

 

Análise Crítica - Atlanta: 3ª Temporada

Review - Atlanta: 3ª Temporada
A série Atlanta sempre flertou com o surrealismo, com o segundo ano entrando ainda mais nessa seara e também em episódios com histórias mais isoladas, remetendo a uma estrutura de antologia. Em sua terceira temporada, que chegou aos streamings brasileiros com anos de atraso (a quarta e última temporada já foi exibida lá fora ano passado), a série mergulha ainda mais no surrealismo, dividindo a narrativa do quarteto principal com episódios que contem histórias isoladas, tentando um meio termo entre uma narrativa seriada e uma estrutura antológica.

A terceira temporada começa com Earn (Donald Glover), Al (Brian Tyree Henry) e Darius (Lakeith Stanfield) chegando à Amsterdã para a turnê europeia de Al. Inesperadamente Vanessa (Zazie Beets) se une ao trio, sem dar muita explicação do motivo de ter ido para a Europa. É claro que isso é o início para uma série de eventos bizarros que podem ou não ser reais.

Um dos pontos fortes de Atlanta é como ela constantemente nos surpreende e vira do avesso suas próprias estruturas e formatos. Sempre começamos os episódios em meio à ação, sem saber o que esperar e os episódios constantemente nos levam por caminhos pitorescos que levantam questões instigantes. O primeiro episódio, por exemplo, começa como uma crítica ao modo como o conselho tutelar e outros órgãos de Estado criminalizam a vida de famílias mais pobres, mas logo se torna uma crítica ao tratamento que famílias brancas dão a crianças negras adotadas, afastando-as de toda sua cultura e hábitos, impondo um modo de vida completamente diferente sob a justificativa de que será melhor, ignorando que estão alienando as crianças negras de todo seu modo de vida original e, de certa forma, operando como colonizadores.

Esse tipo de olhar mordaz para as tensões de raça sempre foi o forte da série, analisando esses temas constantemente evitando maniqueísmos simplórios e entendendo a complexidade dessas discussões. Isso pode ser visto no quarto episódio, quando deixamos o quarteto principal para acompanhar a história de um homem branco (Justin Bartha) em um contexto no qual uma nova legislação obriga os descendentes de donos de escravos a pagarem indenização aos descendentes de seus escravos. A narrativa reconhece como a branquitude carrega consigo privilégios sociais e como a prosperidade dos brancos (mesmo aqueles que não são ricos) foi construída em cima da exploração dos negros. Por outro lado, o arco do protagonista explora o quanto é estranho ser cobrado de uma dívida que você pessoalmente não fez e que por mais progressista que uma pessoa branca seja, na hora de confrontada com as consequências, a realidade pode ser incômoda demais.

O penúltimo episódio, que trata da questão do colorismo, é outra instância em que a série abandona seu quarteto de protagonistas em busca de uma história isolada. Propositalmente filmado em preto e branco para dar a impressão de que negros de pele clara passam por brancos, o episódio reflete sobre os entrelugares ocupados pelas pessoas que não se encaixam nos ideais de negritude da sociedade estadunidense. De um lado temos os filhos de lares multirraciais, como o protagonista Aaron (Tyriq Withers), que se passa por branco na escola, reproduz ideias racistas, mas na hora que vê vantagem quer ser reconhecido como negro. A narrativa não deixa de criticar a afroconveniência de Aaron, mas também reconhece que a maneira com a qual colocamos as pessoas em “gavetas” não dá conta da complexidade humana. Do mesmo modo, um colega de escola de Aaron que é imigrante africano também não é visto como afroamericano pelos colegas por não compartilhar da experiência diaspórica dos negros do país apesar de sofrer o mesmo racismo que os demais negros.

Tensões raciais e sociais também são exploradas nos episódios com o quarteto principal. O terceiro episódio mostra como uma interação sem malícia entre Darius e uma mulher asiática pode levar a reações extremadas de brancos que estão dispostos a serem vistos como socialmente engajados, quando as pessoas da festa reagem de maneira virulenta a uma fala supostamente racista que a mulher teria feito a Darius, quando o próprio não considera a interação como racista. A ideia uma compensação excessiva no combate a injustiças também aparece no oitavo episódio quando Al vai parar no surreal “clube do cancelamento” e se surpreende a encontrar Liam Neeson (interpretando a si mesmo) por lá. A interação entre Al e Neeson pondera sobre os excessos da “patrulha do cancelamento” ao mesmo tempo em que atenta para o fato de que nenhum branco rico é realmente cancelado de verdade e sempre tem segundas chances.

Ainda que fiquem, de certa forma, em segundo plano, as tramas pessoais do quarteto principal também são exploradas ao longo da temporada. O quinto episódio parte de uma estranha trama investigativa, que se estrutura como um pastiche de tramas policiais, para falar da síndrome de impostor de Al e como ele está passando por um bloqueio criativo. O sexto revela como marcas recorrem a influencers e artistas negros para limpar suas imagens sem ter interesse em qualquer combate real contra o racismo, cabendo a artistas como Al saberem como manipular um jogo já manipulado para produzir uma mudança real.

O episódio final é centrado em Vanessa, finalmente tentando explicar a aparição súbita dela na Europa. Agora vivendo em Paris, Vanessa se comporta como uma espécie de estereótipo de comédias românticas que se passam na cidade. Com uma camisa listrada, sotaque carregado, uma baguete na mochila e um cabelo que remete a Amelie Poulain, tudo em Vanessa evoca o tipo de heroína picaresca e romântica de narrativas passadas na cidade. Só que estamos em Atlanta e logicamente a série faz sua versão desse tipo de história, com mafiosos, uma dinâmica sexual maluca com o ator Alexander Skarsgard e um restaurante chique que serve mãos humanas. Se o olhar sobre Paris a vê como uma metrópole excêntrica, a série dobra a aposta na bizarrice e excentricidade do local.

A piração do episódio, porém, não é para simplesmente nos chocar com tudo isso. A cena final de Vanessa conversando com uma amiga é uma revelação dolorosa de como a depressão nos afasta de nós mesmos e nos faz virar alguém que não reconhecemos simplesmente porque é mais fácil performar uma vida ideal do que confrontar o abismo em que estamos. Como falei, a temporada não apresenta resoluções plenas ou arcos muito definidos para seus personagens (a tentativa de Earn em se reaproximar de Vanessa é pouco explorada, por exemplo), o que deve afastar aqueles que procuram uma trama mais serializada. Ainda assim, defendo que a terceira temporada de Atlanta mantém o olhar afiado da série para questões contemporâneas e lida de maneira criativa e iconoclasta com as ideias complexas que tenta abordar, sempre produzindo provocações instigantes ao espectador.

 

Nota: 9/10


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