terça-feira, 18 de abril de 2023

Crítica – Treta

 

Análise Crítica – Treta

Review – Treta
Há um ditado que diz “a grandeza tem pequenos começos”. Isso é dito muitas vezes para falar sobre como pessoas que realizam grandes feitos tem origens humildes, mas poderíamos aplicar isso também a tragédias ou rivalidades. Como nos mostrou o recente Os Banshees de Inisherin, um grande ódio pode nascer de algo pequeno. A minissérie Treta dialoga com essa ideia mostrando como uma discussão de trânsito banal pode escalonar para um conflito que destrói a vida de duas pessoas.

A trama é focada em Danny (Steve Yeun), um empreiteiro que tenta fazer seu negócio decolar, e Amy (Ali Wong), uma empresária bem sucedida que está às portas de fechar um negócio milionário. Um dia Amy dá uma fechada em Danny no estacionamento de uma loja e Danny a persegue pelo trânsito depois que Amy mostra o dedo do meio para ele. Danny perde o carro de Amy de vista mais decora a placa e resolve ir atrás dela em sua casa. A partir daí a rivalidade dos dois só aumenta, bem como os problemas pessoais de cada um.

Amy e Danny são pessoas em momentos diferentes da vida, mas com problemas semelhantes. Ambos são profundamente frustrados e infelizes, tentando encontrar algo que lhes faça sentir completos sem nunca encontrar esse rumo e se autossabotando em decisões ruins. Ao invés de introspecção e de questionar seu próprio papel nos problemas de sua vida, seja em seu sucesso profissional, como no caso de Danny, seja na vida afetiva através da relação com o marido e a filha, no caso de Amy, eles preferem projetar seus problemas em fatores externos, daí talvez o foco tão grande na disputa um com o outro.

É evidente desde o primeiro episódio que o desentendimento entre eles é algo menor frente aos problemas que enfrentam e ainda assim esses personagens dedicam uma quantidade enorme de energia e tempo a ferrarem um ao outro. É como se acreditassem que tomando o controle dessa pequena crise tomariam o controle de suas vidas, se resolvessem esse problema, todos os outros problemas acabariam. De certa forma, a briga também é o meio pelo qual conseguem colocar para fora toda a raiva e frustração que sentem com seus outros problemas, uma carreira que não decola, um marido e uma filha emocionalmente distantes que só se interessam pelo que Amy pode dar, etc.

Aos poucos a trama também vai nos mostrando o passado de seus dois protagonistas e como os problemas ou traumas de juventude marcam suas vidas adultas. Há uma certa medida de trauma geracional em ambos, em como eles lutam para se conformar ou fugir das expectativas que seus pais criaram sobre si, moldando muitas das decisões que lhes causaram problemas na vida adulta.

A série é eficiente em construir os eventos da disputa entre os dois como uma bola de neve que rapidamente sai do controle conforme envolve pessoas ao redor delas, como o irmão de Danny ou o marido de Amy. Essas pessoas acabam tendo reações inesperadas e interferem na briga sempre piorando as coisas, deixando os protagonistas com uma impressão ainda maior de que o outro é culpado por seus infortúnios. A narrativa, porém, aos poucos nos aponta como os próprios personagens são responsáveis por seus problemas, como fica evidente no episódio em que a casa que Danny construiu para os pais pega fogo. Inicialmente pensamos ter sido Amy, raivosa pelo marido tê-la deixado por conta da revelação que ela o traiu com o irmão de Danny, mas logo descobrimos que foi o péssimo trabalho de Danny com a fiação que causou tudo.

De maneira semelhante, em uma cena com a terapeuta, Amy coloca para fora todas as suas inquietações ao dizer que achava que seu casamento com George (Joseph Lee) consertaria seu vazio interior, quando isso não consertou, tentou focar na carreira, o que também não resolveu, e posteriormente na filha, cuja ausência nos primeiros anos da menina acabou fazendo Amy sentir que a relação com a menina era meramente transacional. Nesse momento a personagem transparece um pavor existencial da busca por algo que nos complete, de fazer aquilo que a sociedade espera de nós (formar uma família, ter sucesso na profissão, ganhar dinheiro, etc) imaginando que isso irá nos fazer sentir bem, ignorando que precisamos lidar com nossos problemas interiores ao invés de achar que serão resolvidos por elementos externos. Saber que tudo é transitório, que não há um propósito fixo e que nossas existências só são definidas por nós mesmos é algo verdadeiramente assustador de confrontar.

Nesse sentido, não é possível mencionar as qualidades da série sem falar dos dois protagonistas. Ali Wong e Steve Yeun são excelentes em nos fazer ver a raiva, a frustração, a depressão de seus personagens, bem como o modo que eles tem um afeto genuíno por algumas pessoas ao seu redor. A despeito dos problemas no casamento, Amy de fato ama George e vemos como é doloroso para ela pensar em terminar o relacionamento. De maneira semelhante, apesar de ter tomado muitas decisões que afastaram ou causaram problemas ao irmão, Danny realmente tem um carinho e cuidado com o rapaz. São pessoas complexas, falhas, que cometem erros tentando acertar, que repetem padrões de conduta destrutivos por serem movidos por suas inseguranças e isso é algo que qualquer um de nós consegue se relacionar.

Assim, não é a toa que o surreal episódio final, que os deixa perdidos numa floresta, os faça perceber como são tênues as fronteiras que os separam. Em uma cena que remete a Persona (1966), de Ingmar Bergman, eles trocam de lugar e se mesclam um no outro ao ponto de não sabermos quem é quem. É uma metáfora eficiente sobre como estamos tão fechados em nós mesmos que deixamos de ver a humanidade naqueles ao nosso redor, que vemos as outras pessoas como problemas ou obstáculos e esquecemos que são seres humanos que estão passando pelas mesmas dificuldades, inseguranças e traumas que nós.

Tenso, absurdo, cômico e triste, Treta apresenta um complexo estudo de personagem a partir de uma rivalidade banal para nos fazer refletir como podemos ser nossos piores inimigos quando não sabemos direcionar nossa raiva.

 

Nota: 9/10


Trailer

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