segunda-feira, 15 de maio de 2023

Crítica – Querida Alice

 

Análise Crítica – Querida Alice

Em uma das primeiras cenas de Querida Alice vemos a protagonista em um bar com as amigas. Ela recebe uma mensagem do namorado e corre para o banheiro para responder, mandando uma foto sensual para ele. Ao chegar no apartamento que divide com ele, Alice (Anna Kendrick) tenta lavar o número de telefone que um bartender escreveu em guardanapo antes de jogá-lo fora. Antes de falar para o namorado sobre uma viagem que irá fazer, a protagonista ensaia suas falas repetidas vezes. São ações que parecem pequenas, mas o acúmulo delas já nos primeiros minutos do filme revela o controle e o temor que Simon (Charlie Carrick) exerce em Alice.

Mesmo distante dele, em uma cabana com as amigas, o namorado segue presente na mente de Alice e estimulando sua conduta. A montagem rapidamente insere imagens rápidas de Simon e suas falas para Alice enquanto ela segue o seu dia, como se ele estivesse ali, censurando e criticando cada ação dela. Não há agressão física, mas o filme deixa evidente o dano psicológico que a relação causa em Alice, algo que fica perceptível no modo como ela se tranca no banheiro e arranca os cabelos quando sente que fez algo errado.

A conduta logicamente não passa batida pelas amigas, que usam a viagem como uma espécie de intervenção, comentando sobre o quão pouco Alice está comendo ou como ela fica desesperada ao receber uma notificação do namorado no celular. Alice rechaça esses comentários fruto de preocupação como se fossem críticas virulentas e se defende de uma maneira agressiva. Ela soa como se fosse membra de alguma seita e tivessem questionado sua fé ou como uma usuária de drogas que teve o vício exposto.

A trama mostra como um relacionamento tóxico pode ser danoso e como alguém dentro de uma relação assim não se percebe como em algo danoso. O que chama atenção é o modo como a diretora Mary Nighy, em seu primeiro longa, constrói a implosão interior de Alice. Evitando grandes arroubos dramáticos ou um retrato do namorado tóxico como um psicótico caricato, Nighy conduz tudo com um olhar discreto e contemplativo. Não vemos Alice falar como se sente, mas sua conduta, seu olhar e o modo como a montagem articula o presente da personagem a presença do namorado dizem muito sobre como ela se sente.

Claro, muito do senso de implosão de Alice, da impressão que ela está desmoronando em seu interior, vem da performance de Anna Kendrick. É visível o desespero silencioso de seu olhar e como ela demonstra uma profunda solidão mesmo cercada de amigas (algo que o filme ressalta ao deixar Alice sozinha em quadro boa parte do tempo), nos permitindo perceber a dor e a dúvida que ela carrega em seu interior. Quando Kendrick está em cena, percebemos que estamos diante de alguém com a autoestima devastada que se mantem em um relacionamento nocivo por genuinamente acreditar que é uma péssima pessoa e que alguém como Simon é tudo que ela merece.

Nesse sentido é uma pena que a narrativa não chegue a nos dar muitas pistas de como o relacionamento deles começou e como chegou naquele estado. Ainda assim, a conduta de Simon em criticar as amigas dela e fazer Alice pensar que ele é a única pessoa que verdadeiramente se importa com ela revela como ele pode ter alienado a namorada da maioria das pessoas de seu convívio e ampliado seu controle sobre ela.

Tão importante quanto o trabalho de Kendrick é o de Kaniethiio Horn e Wunmi Mosaku como as amigas de Alice. As três convencem como pessoas que se conhecem de longa data e que sabem exatamente o que falar para se fazer ouvir ou para atingir a outra. O entendimento entre elas também se constrói pelo olhar e como conseguem dizer muito uma para outra sem precisar falar. Isso fica evidente no final, quando elas ajudam Alice a confrontar Simon. Mesmo com Alice paralisada de medo e incapaz de encarar Simon, a maneira como ela e as amigas se olham durante a cena dá a impressão de que frases inteiras estão sendo ditas ali.

Com uma performance introspectiva de Anna Kendrick e um olhar intimista para o sofrimento psíquico de alguém presa a um relacionamento tóxico, Querida Alice retrata com um realismo seco o tormento desse tipo de relação.

 

Nota: 8/10


Trailer

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