A trama é protagonizada por Dora (Fernanda Montenegro) uma professora aposentada que passa seus dias na Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, escrevendo cartas para pessoas analfabetas. Um dia ela conhece o garoto Josué (Vinícius de Oliveira), cuja mãe pediu para Dora escrever uma carta para o pai do menino. Quando a mãe de Josué é morta em um atropelamento e o garoto fica sozinho na estação, Dora se compadece e decide ajudar o menino, embarcando em uma viagem pelo coração do Brasil para encontrar a família do garoto e, no processo, acaba se redescobrindo.
Dora é uma mulher solitária e endurecida pela vida, que se fechou para o mundo depois de uma série de traumas e nunca se dispôs a tentar voltar para ele. Sua conexão com Josué nasce dela identificar no garoto o mesmo tipo de passado que ela teve, com um pai ausente e alcoólatra que ele quer se aproximar, no entanto ela reluta em se abrir para o garoto e deixar ele entrar em sua vida justamente por temer estragar tudo. A viagem serve para Dora se abrir para essas experiências humanas e afetivas, com isso nos fazendo perceber sua vulnerabilidade e carência, algo que fica evidente na cena em que ela tenta se aproximar do caminhoneiro Cezar (Othon Bastos), apenas para ser deixada por ele.
Fernanda Montenegro é excelente em mostrar a vulnerabilidade que Dora vai abrindo aos poucos, bem como as maneiras que sua personalidade rígida e mau humorada vem de uma necessidade de sobrevivência e um senso de autoproteção. Conforme ela se abre emocionalmente e se permite formar uma laço afetivo com Josué vemos a personagem recobrar uma conexão com os próprios sentimentos que ela mesma achava que tinha perdido.
Claro, nada disso funcionaria se o garoto Josué não nos fizesse entender porque alguém como Dora se permitiria ajudar um completo desconhecido e Vinícius de Oliveira, que nunca tinha trabalhado como ator até então, nos convence da carência e ingenuidade do menino que tenta se mostrar mais apto do que realmente é em lidar com a situação precária em que se encontra. Em várias entrevistas anos depois do filme o diretor Walter Salles menciona como temia que Vinícius tivesse o mesmo destino de Fernando Ramos, também um não-ator usado como protagonista de Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980), que depois do sucesso do filme voltou para as ruas e acabou morto pela polícia. Salles se tornou uma espécie de mentor para Vinícius, ajudando em sua carreira e estudos, com Vinícius mantendo a carreira artística até hoje, tendo atuado em filmes como Boi Neon (2015) ou em séries como Magnífica 70, da HBO, ou Segunda Chamada, da Globo.
O filme não é apenas sobre a relação entre Dora e Josué. É também sobre o Brasil. Um Brasil vasto, maior do que imaginamos e sobre o qual conhecemos muito pouco. Um Brasil cujos interiores parecem desconectados dos grandes centros urbanos e parecem operar em uma lógica própria, com uma população mais precarizada e mais humilde, mas não menos disposta a buscar uma vida melhor. Um Brasil no qual é fácil se perder, como ilustra as várias tentativas de localizar o pai de Josué, mas também no qual é possível se encontrar, como acontece na jornada emocional de Dora.
Considerando que o filme é lançado dez anos depois da redemocratização, a viagem aqui retratada é quase como uma tentativa de reapresentar o Brasil para os brasileiros, de nos lembrarmos de um Brasil que foi invisibilizado e esquecido pelo tempo com o qual precisamos nos reencontrar enquanto nação, enquanto povo e enquanto indivíduos. Um exemplo é o uso de não atores para as cenas dos clientes de Dora, trazendo pessoas reais narrando suas experiências, sentimentos e anseios, deslocando o nosso olhar para indivíduos que não costumam ser o foco de discursos midiáticos. A viagem de Dora e Josué serve para nos lembrar de como o Brasil, apesar de suas dificuldades, desigualdades e até da crueldade que presenciamos no cotidiano das grandes cidades, é um lugar que merece ser visto, merece ser conhecido. Que a despeito de tudo nossa população continua tentando melhorar de vida, continua a buscar seus sonhos e o melhor que podemos fazer é tentar superar as distâncias (literais e afetivas) que nos separam.
A cena final, com Dora deixando
Josué com os irmãos (em uma participação pequena, mas calorosa de Matheus
Nachtergaele e Caio Junqueira) e escrevendo uma carta para o garoto amarra bem
essas duas jornadas, a de uma pessoa que se reconecta com emoções que não sabia
que ainda tinha e a de um país que volta a olhar para si e pensar em seu projeto
de nação. Se você não se emocionar ao ouvir Fernanda Montenegro dizer “tenho
saudade do meu pai, tenho saudade de tudo” enquanto Dora e Josué contemplam
suas respectivas fotos, então você está morto por dentro.
Trailer
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