terça-feira, 2 de maio de 2023

Rapsódias Revisitadas – Central do Brasil

 

Análise Crítica – Central do Brasil

Review – Central do Brasil
Lançado em 1998, Central do Brasil celebra 25 anos em 2023 e fiquei em dúvida se eu teria algo a dizer sobre esse filme que já não tenha sido dito antes. Provavelmente o auge do movimento da Retomada do cinema brasileiro na segunda metade da década de 1990, Central do Brasil foi extremamente bem sucedido tanto em termos de bilheteria quanto de reconhecimento. Venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim, além de um prêmio para Fernanda Montenegro como melhor atriz, foi indicado a dois Oscars (melhor filme estrangeiro e melhor atriz), além de indicações ao BAFTA, César e Globo de Ouro.

A trama é protagonizada por Dora (Fernanda Montenegro) uma professora aposentada que passa seus dias na Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, escrevendo cartas para pessoas analfabetas. Um dia ela conhece o garoto Josué (Vinícius de Oliveira), cuja mãe pediu para Dora escrever uma carta para o pai do menino. Quando a mãe de Josué é morta em um atropelamento e o garoto fica sozinho na estação, Dora se compadece e decide ajudar o menino, embarcando em uma viagem pelo coração do Brasil para encontrar a família do garoto e, no processo, acaba se redescobrindo.

Dora é uma mulher solitária e endurecida pela vida, que se fechou para o mundo depois de uma série de traumas e nunca se dispôs a tentar voltar para ele. Sua conexão com Josué nasce dela identificar no garoto o mesmo tipo de passado que ela teve, com um pai ausente e alcoólatra que ele quer se aproximar, no entanto ela reluta em se abrir para o garoto e deixar ele entrar em sua vida justamente por temer estragar tudo. A viagem serve para Dora se abrir para essas experiências humanas e afetivas, com isso nos fazendo perceber sua vulnerabilidade e carência, algo que fica evidente na cena em que ela tenta se aproximar do caminhoneiro Cezar (Othon Bastos), apenas para ser deixada por ele.

Fernanda Montenegro é excelente em mostrar a vulnerabilidade que Dora vai abrindo aos poucos, bem como as maneiras que sua personalidade rígida e mau humorada vem de uma necessidade de sobrevivência e um senso de autoproteção. Conforme ela se abre emocionalmente e se permite formar uma laço afetivo com Josué vemos a personagem recobrar uma conexão com os próprios sentimentos que ela mesma achava que tinha perdido.

Claro, nada disso funcionaria se o garoto Josué não nos fizesse entender porque alguém como Dora se permitiria ajudar um completo desconhecido e Vinícius de Oliveira, que nunca tinha trabalhado como ator até então, nos convence da carência e ingenuidade do menino que tenta se mostrar mais apto do que realmente é em lidar com a situação precária em que se encontra. Em várias entrevistas anos depois do filme o diretor Walter Salles menciona como temia que Vinícius tivesse o mesmo destino de Fernando Ramos, também um não-ator usado como protagonista de Pixote: A Lei do Mais Fraco (1980), que depois do sucesso do filme voltou para as ruas e acabou morto pela polícia. Salles se tornou uma espécie de mentor para Vinícius, ajudando em sua carreira e estudos, com Vinícius mantendo a carreira artística até hoje, tendo atuado em filmes como Boi Neon (2015) ou em séries como Magnífica 70, da HBO, ou Segunda Chamada, da Globo.

O filme não é apenas sobre a relação entre Dora e Josué. É também sobre o Brasil. Um Brasil vasto, maior do que imaginamos e sobre o qual conhecemos muito pouco. Um Brasil cujos interiores parecem desconectados dos grandes centros urbanos e parecem operar em uma lógica própria, com uma população mais precarizada e mais humilde, mas não menos disposta a buscar uma vida melhor. Um Brasil no qual é fácil se perder, como ilustra as várias tentativas de localizar o pai de Josué, mas também no qual é possível se encontrar, como acontece na jornada emocional de Dora.

Considerando que o filme é lançado dez anos depois da redemocratização, a viagem aqui retratada é quase como uma tentativa de reapresentar o Brasil para os brasileiros, de nos lembrarmos de um Brasil que foi invisibilizado e esquecido pelo tempo com o qual precisamos nos reencontrar enquanto nação, enquanto povo e enquanto indivíduos. Um exemplo é o uso de não atores para as cenas dos clientes de Dora, trazendo pessoas reais narrando suas experiências, sentimentos e anseios, deslocando o nosso olhar para indivíduos que não costumam ser o foco de discursos midiáticos. A viagem de Dora e Josué serve para nos lembrar de como o Brasil, apesar de suas dificuldades, desigualdades e até da crueldade que presenciamos no cotidiano das grandes cidades, é um lugar que merece ser visto, merece ser conhecido. Que a despeito de tudo nossa população continua tentando melhorar de vida, continua a buscar seus sonhos e o melhor que podemos fazer é tentar superar as distâncias (literais e afetivas) que nos separam.

A cena final, com Dora deixando Josué com os irmãos (em uma participação pequena, mas calorosa de Matheus Nachtergaele e Caio Junqueira) e escrevendo uma carta para o garoto amarra bem essas duas jornadas, a de uma pessoa que se reconecta com emoções que não sabia que ainda tinha e a de um país que volta a olhar para si e pensar em seu projeto de nação. Se você não se emocionar ao ouvir Fernanda Montenegro dizer “tenho saudade do meu pai, tenho saudade de tudo” enquanto Dora e Josué contemplam suas respectivas fotos, então você está morto por dentro.


Trailer

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