quarta-feira, 17 de maio de 2023

Succession e a democracia no contexto do capitalismo


Em seu antepenúltimo episódio intitulado America Decides, a série Succession carrega sua ironia desde o título. O episódio acompanha em tempo real os bastidores da cobertura da eleição presidencial pela ATN, emissora fictícia que pertence aos protagonistas (lembrando que Logan Roy foi inspirado no magnata Rupert Murdoch, dono da emissora conservadora Fox News). Tom (Matthew McFayden) tenta manter tudo sob controle, mas as coisas desmoronam quando um incêndio atinge um centro de contagem de votos em um estado chave. Logo Kendall (Jeremy Strong), Shiv (Sarah Snook) e Roman (Kieran Culkin) invadem a redação para saber como Tom irá guiar o enquadramento midiático da notícia.

 

A Sombra de Logan
 

Logan (Brian Cox) pode ter morrido, mas ainda projeta uma enorme sombra sobre a sua prole, com os três irmãos ponderando o que o pai faria. Eles deveriam manter a postura do pai em não interferir nas notícias e deixar que os analistas de dados projetassem o vencedor? Eles deviam se aliar a Mencken, candidato de extrema direita, cujo discurso de ódio já atingiu diretamente a filha adotiva de Kendall, só porque ele já tinha se comprometido a bloquear a venda da Waystar para Lukas Matsson (Alexander Skarsgard)? Deveriam pensar no que seria melhor para país e pender para o lado de Jimenez apesar dele não ter se comprometido com os interesses dos Roy e Shiv tem trabalhado para mantê-lo assim já que tem interesse em Matsson fechar o acordo.

Como o episódio se passa todo dentro da redação e praticamente em tempo real, não temos acesso aos fatos do dito incêndio e ficamos apenas com conjecturas, se foi causado por apoiadores de Mencken por saber que ele perderia naquele estado, se foi alguma pane elétrica como Roman faz questão de apontar. Sendo uma grande emissora de notícias, o fato da ATN projetar um determinado vencedor quando todo o caos daquele dia garantiria que nada estava certo poderia direcionar uma parcela da opinião pública e também explicitar os interesses dos donos do veículo de notícias, mostrando como o jornalismo não tem como ser plenamente isento.

É comum as vezes dizer que determinado filme ou série é “difícil de assistir” por ter temas muito explícitos ou trazer vivências traumáticas que podem abalar o espectador e, de certa forma, isso se aplica a esse episódio. Não porque exibe violência ou alguma experiência emocional problemática, mas porque seu retrato de como bilionários tentam manipular o resultado de uma eleição é tão plausível, tão próximo do nosso mundo, que é difícil não se horrorizar imaginando o que acontece nos bastidores de eleições reais.

Nesse sentido, o episódio faz uma dura análise da bagunça que são as regras das eleições presidenciais dos EUA. Sem um órgão centralizador que dite as regras, como o nosso TSE, cada estado faz o que bem entende e não há contingências claramente estabelecidas para situações como a que a série mostra. O fato dos votos serem contados manualmente só piora as coisas, aumentando a incerteza e fazendo aumentar a pressão das forças interessadas em dobrar a democracia a seus interesses.

 

Os Irmãos
 

No caso específico de Succession estamos falando de pessoas com interesses bem mesquinhos e nem me refiro aos interesses econômicos. Ao longo do episódio fica evidente que a decisão de Roman em se alinhar com Mencken não tem nada a ver com a empresa e sim com ele recuperar a posição de visibilidade e poder que ele sente que perdeu desde que Kendall se saiu bem sozinho na reunião dos acionistas. Roman não apenas teme que o irmão não precise dele como também carrega uma bagagem de ressentimento relativa a toda uma vida sendo preterido em favor de Kendall e usa esse momento como uma espécie de revés infantil. Isso é explicitado no momento em que Roman diz que na infância sempre jantavam o que Kendall queria. Sim, um bilionário está prestes a dar a presidência a um fascista por conta de uma birra infantil.

Shiv não se sai muito melhor. Por mais que ela se apegue a qualquer mínimo fiapo de superioridade moral para se sentir melhor que os irmãos e o pai, a verdade é que ela não quer a vitória de Jimenez por ser melhor para o país ou para as minorias. O que ela quer é ferrar os irmãos e dar a empresa a Matsson na esperança que a lealdade dela seja retribuída de alguma forma, já que ela percebeu que não há espaço na Waystar para ela com Kendall e Roman no comando. Ela também quer mostrar que é uma operadora corporativa e política melhor que os irmãos, uma noção a qual ela (e parte do público) se apegaram durante toda a série. Tudo isso, no entanto, desmorona quando Kendall descobre as mentiras de Shiv e tudo que ela consegue fazer é gaguejar desesperadamente. Pega com a boca na botija em um esquema amador e sem ter como justificar as ações, ela começa a lançar bravatas sobre pensar no bem comum, quando é bem óbvio que ela só estava tentando obter vantagens pessoais, expondo sua hipocrisia.

Por mais que queira pensar que é mais humano e menos terrível que o pai, Kendall mostra que está no caminho para se tornar igual a ele, talvez até pior já que Logan ao menos assumia seu desdém pelas pessoas e não tinha vergonha em dizer que só pensava em si mesmo. Neste antepenúltimo episódio, porém, Kendall mostra ser um fraco e um covarde. Fraco porque mesmo tentando ser um bom pai e sabendo do que o discurso de ódio de Mencken pode causar à própria filha, ainda assim ele escolhe o ganho pessoal ao bem-estar da prole. Covarde porque ele sequer tem a mínima decência de assumir que é isso que ele quer e culpa Shiv e sua traição por decidir direcionar a cobertura em favor de Mencken, já que ela não teria garantido o apoio de Jimenez e só o candidato de extrema direita lhe daria o que ele queria. Assim como Roman, é um bilionário movido por birra entregando o país a um pretenso autoritário, sendo que não será ele a sofrer diretamente as consequências dessa retórica de extrema direita.

Todos os três tinham a chance de simplesmente deixar o jornalismo fazer o seu trabalho. De colocar um dos especialistas de dados de Tom para explicar porque não poderia ser anunciado um vencedor naquela noite. Poderiam ter informado a população, dado ao povo entendimento e segurança para navegar nos mares de instabilidade política que viriam e até na necessidade de reformas da estrutura política caótica dos Estados Unidos. Ao invés disso escolheram apagar um incêndio com gasolina ao declarar um vencedor que atendia aos seus interesses sem se importar com a instabilidade política que uma afirmação daquelas pode causar ao país.


Pescando ilusões
 

Ao longo de quatro temporadas Succession nos fez ver a humanidade fraturada dos irmãos Roy. De como crescer sob uma figura simultaneamente opressiva e ausente como Logan os causou profundas sequelas psicológicas. Isso nos faz muitas vezes nos compadecer por esses personagens, até torcer por eles porque reconhecemos neles falhas que vemos em pessoas ao nosso redor, até em nós mesmos. O que America Decides faz é desvelar a impressão de que eles são pessoas como nós por conta de traumas similares. Porque a maioria de nós não usa nossos problemas emocionais para tomar decisões que afetam milhões de pessoas. 

A maioria de nós não tem poder para, em um capricho, desmantelar uma empresa e acabar com a vida de todos os seus funcionários. É aí que reside a monstruosidade dos Roy, o fato deles saberem o poder que tem em mãos, saberem o quanto são desajustados e ainda assim verem o mundo como mero joguete. Nenhum deles vê qualquer problema em agir de maneira impensada ou imatura porque nada do que fazem tem qualquer consequência para eles.

O episódio encerra com um discurso de vitória de Mencken agradecendo ao povo dos EUA pelos votos, dizendo que só venceu porque tinha o povo do lado. Enquanto ouvimos o discurso a câmera corta para os rostos dos Roy, revelando a ironia daquela fala e do título do episódio. Não foi uma decisão popular. A eleição foi decidida por um punhado de bilionários egoístas, ególatras, mesquinhos, imaturos e interessados apenas em ganhos pessoais. 

Gostamos de pensar que cada voto conta, que todos somos iguais em um Estado democrático de direito, mas em meio a todo o sarcasmo Succession nos aterroriza com a constatação de que igualdade plena não é possível em um sistema no qual um punhado de pessoas adquire tanta riqueza e influência que pode ser capaz de decidir eleições. Queremos acreditar que temos algum controle, que a população, se conseguir verdadeiramente se unir, pode vencer por conta de ser a maioria. O oitavo episódio da quarta temporada de Succession, no entanto, nos deixa com o gosto amargo de que tudo isso pode não passar de uma grande ilusão e que nossos destinos são decididos por pessoas moral e emocionalmente minúsculas que detêm quantidades obscenas de capital.

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