quarta-feira, 30 de agosto de 2023

O Urso e a família enquanto sentença

 

Análise O Urso e a família enquanto sentença

Ao assistir o sexto episódio da segunda temporada de O Urso me lembrei do pôster do filme Os Excêntricos Tenenbaums (2001) que trazia a frase “família não é uma palavra, é uma sentença”. A frase trazia uma brincadeira de duplo sentido com a palavra sentença. De um lado podia significar sentença no sentido de período ou frase, afirmando que família é algo tão complicado que é uma frase inteira em uma só palavra. Por outro lado, sentença podia ser entendido como uma sentença jurídica, uma decisão de uma instância de poder que decide o rumo de sua vida. Nesse caso seria possível entender a família como algo que carregamos conosco querendo ou não e que para o bem ou para o mal define muito de nossos rumos, transmitindo valores, visões de mundo, bens matérias, traumas, preconceitos e uma série de outras coisas.

 

Peixes

Intitulado Peixes, o sexto episódio da segunda temporada de O Urso nos leva a um flashback de uma noite de Natal anos antes do suicídio de Mike (Jon Berthal) para nos mostrar a explosiva dinâmica familiar dos Berzatto. Com pouco mais de uma hora, o episódio nos mostra a crescente tensão da noite do jantar, bem como a instabilidade de muitos membros da família, o que nos faz pensar que há ali uma predisposição a certos transtornos ou que esses problemas decorrem dos traumas que são replicados e passados a cada geração. Uma sentença passada aos membros da família e conforme a trama avança nos perguntamos o quanto disso foi passado para Carmy (Jeremy Allen White).

O episódio chama a atenção pela quantidade de atores convidados, como Bob Odenkirk (de Better Call Saul) como o tio Lee, Sarah Paulson como a prima Michelle, John Mulaney como o cônjuge de Michelle e Jamie Lee Curtis como Donna, a mãe de Mike, Carmy e Natalie (Abby Elliott). Ao longo de uma duração de mais de uma hora acompanhamos Donna preparar uma suntuosa ceia com sete frutos do mar diferentes, algo que ela faz todo ano. Ela recusa ajuda e se irrita caso alguém pergunte se está tudo bem com ela (Mike chega a dizer a Natalie no início do episódio para não fazer isso).

Enquanto isso, Carmy, que volta para casa pela primeira vez em muito tempo desde que foi para Copenhague, claramente se sente deslocado diante de toda a confusão que se impõe. Ele tenta se reaproximar de Mike, mas ao mesmo tempo se incomoda com a instabilidade da mãe e comentários dos parentes com insinuações passivo agressivas de que ele fora para a Europa para fugir de toda a maluquice de sua família.

O ritmo intenso com o qual Donna trabalha (bem como o uso da montagem para conferir esse ritmo) somado aos sons constantes de alarmes que a lembram de checar o cozimento de vários elementos diferentes remetem à loucura nas cozinhas de restaurantes que vemos Carmy experimentar. Assim, nos perguntamos se essas experiências familiares não contribuíram para que o protagonista buscasse esse tipo de ambiente de pressão constante.

De início o fato de Donna querer fazer tudo sozinha remete a certas expectativas sociais que muitas mulheres absorvem para si, de serem a responsável por alimentar a família e fazer um esforço hercúleo e se sacrificarem para fazer um jantar incrível mesmo sabendo que não terão o devido valor ou reconhecimento da parentela. Conforme avançamos na longa jornada noite adentro, porém, vamos percebendo que há mais do que martírio feminino na conduta de Donna já que ela começa a chorar copiosamente ou reage de maneira agressiva a interações sociais que não parecem dignas de reações tão extremadas. O mesmo acontece com Mike, que depois de recusar a proposta de Carmy para trabalhar no The Beef começa a chorar e bater no próprio rosto. São ações que demonstram que essa família não está bem mentalmente.

As tensões vão cozinhando lentamente até o momento da ceia em que Mike e o tio Lee discutem feio. Uma daquelas brigas familiares que inicia por coisas banais e perde o controle bem rápido com as partes envolvidas botando para fora ressentimentos antigos e dizendo coisas desmedidas uns para os outros, deixando o resto dos parentes constrangidos e tensos. As coisas aliviam quando o marido de Michelle faz uma oração afetuosa sobre a ceia, agradecendo o acolhimento dos Berzatto, mas logo volta a perder o controle assim que Donna chega à mesa. Quando Natalie pergunta à mãe se ela está bem, Donna perde o controle e sai da sala, com Lee dizendo que cedo ou tarde ela surtaria, Mike parte para cima de Lee e nessa hora a matriarca da família atravessa a parede da sala com o carro. Lee corre em socorro da mãe, mas Carmy fica atônito, com o olhar fixado nos cannolis e no garfo que ficou preso neles depois de ser arremessado por Mike na direção de Lee.

A imagem do cannoli atravessado pelo garfo mostra como até mesmo as coisas que Carmy adora, como a cozinha, são literalmente atravessadas pela instabilidade de sua família. Tudo o que acontece no sexto episódio também nos faz pensar até que ponto o colapso de Carmy na Europa se deveu apenas pelo estresse do trabalho e não por anos de trauma geracional acumulado e nunca tratado.

 

Urso

Essas perguntas sobre Carmy e como seus problemas emocionais parecem estar diretamente conectados a sua família voltam a emergir com força no último episódio da temporada, intitulado O Urso. No final da segunda temporada, Carmy e sua equipe convidam parentes e amigos para jantarem no restaurante como uma forma de testar a eficiência do serviço e da cozinha antes da abertura propriamente dita.

É logicamente um momento muito tenso em que a equipe precisa trabalhar toda junta pela primeira vez e vários problemas acontecem. Um deles é quando Carmy acidentalmente se tranca dentro da câmara fria no auge do serviço por conta de uma maçaneta quebrada, uma maçaneta que ele tinha assumido a responsabilidade de consertar, mas que falhou em ligar para o técnico ao longo do dia.

Isolado e aprisionado por culpa própria enquanto acha que o restaurante está desmoronando (o resto da equipe se reorganiza e consegue dar conta do serviço), Carmy revisita traumas antigos e reclama do presente. Todos os problemas emocionais represados começam a desemaranhar-se na mente dele e, tal qual Donna e Mike no sexto episódio, ele parece reagir de modo extremo e maníaco a um problema que não é tão grave quanto parece. Qualquer um dos amigos que se aproxima para falar com ele é rechaçado com agressividade, repetindo o comportamento da mãe e do irmão.

As conversas através da grossa porta representam as barreiras emocionais que Carmy ergueu em volta de si e que afastam as pessoas que tentam ajudá-lo. Não é a toa que a conversa entre ele e Richie (Ebon Moss-Bachrach) é filmada de lado, com a porta da câmara fria servindo como uma barreira visível distanciando os dois personagens. O isolamento de Carmy na câmara fria serve como uma perfeita metáfora visual do isolamento emocional dele, de como ele se fechou tanto ao mundo e deixou absorver tanto pelos próprios traumas, inseguranças e ansiedades que não apenas não há como ninguém entrar, como ele não permite que ninguém chegue perto ou o ajude. Afastando os que tentam.

O momento em que ele diz que não deveria ter iniciado o relacionamento com Claire (Molly Gordon) porque isso o deixou distraído e o fez cometer os erros que levaram ele a ficar sem saber que a namorada estava do outro lado da porta ouvindo tudo é de cortar o coração. Aquele era um relacionamento saudável, que parecia estar fazendo bem para Carmy e é triste vê-lo se autossabotar ao deixar que sua ansiedade e sentimentos de inadequação tomem o controle e lhe façam dizer coisas que não deveriam. A relação com Claire o fez se abrir emocionalmente aos membros de sua equipe, como Sydney (Ayo Edebiri) e Richie, desenvolvendo dinâmicas mais saudáveis com ele. Que ele a afaste em um momento de crise espelha o modo como Mike, também passando por um claro sofrimento psicológico, afastou Carmy no sexto episódio. 

É igualmente um reflexo da aparição de Donna no episódio final. O marido de Natalie a vê do lado de fora e a chama para entrar, mas Donna recusa, começando a chorar dizendo que não quer estragar tudo para os filhos porque não sabe como pedir perdão, porque não sabe como consertar as coisas com eles. Tal como a mãe afastou os filhos, Carmy afastou Claire e os demais de si, se isolando, e talvez, como a mãe, seja difícil para ele consertar as coisas.

É uma trágica regressão do progresso que ele construiu ao longo da temporada, mas não deixa de ser um desenvolvimento coerente a partir de todo o trauma familiar que nos foi apresentado. Em outras séries esse tipo de regressão poderia soar como um expediente forçado de roteiro para manter o status quo dos personagens, mas aqui soa orgânico como parte de um longo e tortuoso processo de superação de luto (pela perda de Mike) e entendimento de que se tem problemas emocionais e que é necessário obter ajuda. É um processos que não é linear e que a série desenvolve muito bem através desse personagem que claramente tem boas intenções e nutre um afeto verdadeiro pelos amigos e colegas, mas fica tão preso em sua própria cabeça que não se permite viver esses sentimentos e botar tudo para fora. 

Saber o passado de Carmy aumenta nossa preocupação com seu futuro porque tememos que ele repita os mesmos erros e incorra nos mesmos problemas de Mike e Donna. Nos relacionamos com ele porque já vimos ou vivenciamos como esse tipo de trauma repassado a cada geração pode ser danoso e como é triste sermos condenados a repetir o que gerações passadas fizeram. Ganhar ciência disso, porém, pode ser o caminho para romper o ciclo e por mais que o episódio final mostre que Carmy parece carregar consigo a sentença imposta por sua família, a imagem da porta sendo cortada carrega a esperança que o personagem possa se abrir e evitar que mais um ciclo de trauma geracional se repita.

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