quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Crítica – Retratos Fantasmas

 

Análise Crítica – Retratos Fantasmas

Review – Retratos Fantasmas
Em seus dois primeiros longas, O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), o diretor Kleber Mendonça Filho falava de preocupações sobre a transformação do cotidiano e da paisagem urbana de Recife. Questões que, embora as narrativas localizassem nesse contexto específico, dialogavam com o contexto maior da urbanização e segurança pública no Brasil. Neste Retratos Fantasmas, documentário ensaístico sobre a paisagem urbana de Recife, Mendonça usa a discussão do fim dos cinemas de rua no centro de sua cidade para retomar essas ponderações sobre a paisagem urbana brasileira.

O filme é dividido em duas partes, a primeira dedicada ao bairro de Setúbal e ao apartamento em que viveu durante boa parte da vida. A segunda ao centro de Recife e ao desaparecimento das salas de cinema de rua. Na primeira parte o diretor pondera sobre o local em que cresceu e como a relação com o bairro influenciou suas visões sobre a urbanização de Recife e seu próprio cinema.

Misturando imagens captadas para o documentário e cenas de O Som ao Redor o diretor nos mostra como muitas cenas daquele filme foram captadas no apartamento e na rua em que crescera. Esse uso da montagem para fundir tempos e espaços é constante ao longo do filme, que serve tanto para fazer associações entre as imagens do mundo e a subjetividade que o diretor imprime através de sua narração como também para revelar ecos do passado no presente através do registro audiovisual. É como se o cinema servisse para criar fantasmagorias do passado que constantemente assombram e se impõem no presente. Um lembrete constante do que foi, do que poderia ser e do que deixou de ser que nunca nos permite esquecer ou cortar nossa conexão com o passado.

Vemos isso no momento em que Kleber narra a presença constante de um cachorro da casa vizinha em seus filmes, aparecendo as vezes até por acidente, e contrastando as imagens da casa e do cão no passado com cenas do presente com a casa abandonada, em ruínas, com paredes de cupins e tomada por gatos de rua. Um símbolo da degradação causada pelo tempo e das transformações por ele provocadas ao mesmo tempo que serve como um lembrete da permanência das memórias e histórias contadas no cinema.

Na segunda parte, ao falar do centro de Recife, o diretor pondera sobre as transformações no local e como os interesses econômicos foram se deslocando ao longo do tempo, deixando de investir no centro para se deslocar para o desenvolvimento de outras áreas, deixando o centro abandonado. São transformações que apontam para processos em marcha em boa parte dos centros urbanos do Brasil em que as antigas áreas centrais de comércio de rua são deixadas de lado e as cidades se transformam em conjuntos de condomínios fechados e shoppings.

Ao contar a história de alguns espaços marcantes do centro da cidade o diretor também conta histórias de pessoas nesses espaços em uma espécie de estrutura rizomática em que cada história se abre para múltiplos caminhos narrativos e como cada pedaço da cidade influencia e conecta várias pessoas de diferentes maneiras. Isso aparece no segmento em que ele narra a história do prédio em que ficavam os escritórios das distribuidoras de cinema e como semanalmente essas distribuidoras jogavam no lixo materiais de divulgação não utilizados como pôsteres, pressbooks ou rolos de filme com trailers. Materiais que eram coletados por pessoas no entorno e guardados como parte de coleção ou revendidos na rua para cinéfilos interessados. Mendonça se detém brevemente sobre a história de um desses revendedores, que fazia isso mais por paixão do que necessidade, já que ele tinha um emprego no porto, narrando inclusive um episódio em que o sujeito impediu um incêndio no porto de Recife.

O principal da segunda parte, no entanto, é a reflexão sobre o fim de duas grandes salas de cinema no centro da cidade, contando a história desses cinemas e também dos impactos que eles tiveram na cultura da cidade, além do vazio que a ausência deles deixou. Isso fica evidente nas cenas com Seu Alexandre, projecionista de uma das salas que diz, durante a última sessão antes do cinema encerrar suas atividades que seriam as lágrimas dele que fechariam o cinema

Ao longo desse segmento ele usa as fusões de montagem, misturando passado e presente, mas também usando a montagem para misturar imagens e sons de diferentes épocas. Em um momento o diretor narra que filmou uma cena de Aquarius em que Sônia Braga caminhava diante de uma loja de departamentos que outrora fora um cinema e que neste cinema ocorreu a estreia de Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976). Nesse momento, Mendonça mistura as imagens de Braga em Aquarius com o áudio dela no como Dona Flor, dando materialidade à sua imaginação de fazer convergir duas Sônia Braga no mesmo espaço em tempos diferentes que provavelmente orientou a escolha da locação para Aquarius.

O filme encerra com uma cena ficcionalizada de uma conversa entre o diretor e um motorista de aplicativo no qual eles conversam sobre o centro da cidade. A cena reflete sobre essa relação entre o visível e o invisível no cinema e como o registro do mundo muitas vezes torna visível, material, elementos de uma realidade que por vezes nos são invisíveis ou se perdem no fluxo do tempo. As imagens das fachadas atuais do centro da cidade, tomada por uma quase onipresença de redes de farmácias trazem uma certa melancolia sobre a perda de identidade desses espaços e é algo que podemos relacionar com qualquer outra grande cidade no Brasil.

Mais que um passeio pela relação pessoal do diretor com sua cidade, Retratos Fantasmas é um envolvente ensaio sobre a permanência das imagens do cinema e dos impactos das transformações urbanas no Brasil ao longo das últimas décadas.

 

Nota: 10/10


Trailer

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