A trama acompanha uma família de férias. O casal Clay (Ethan Hawke) e Amanda (Julia Roberts) alugam uma remota propriedade de luxo para passarem um final de semana com os dois filhos. Durante a viagem eles notam que a internet e o sinal de tv não funcionam, mas não pensam ser nada demais. Ao longo do dia outros fenômenos estranhos voltam a acontecer e as coisas se agravam quando dois estranhos, George (Mahershala Ali) e Ruth (Myha’la), batem à porta e pedem abrigo de um severo blecaute. Agora eles precisam encontrar um jeito de conviverem enquanto o mundo ao redor deles parece desmoronar.
Inicialmente a chegada de George e da filha dá a entender que o filme será todo confinado à casa, examinando as tensões entre as duas famílias e como conflitos de classe e raça emergem disso. Conforme a trama avança, porém, o filme se estende para além da casa e passa a tratar do mundo ao redor desses personagens e dos eventos envolvendo a crise. A questão é que o filme parece não se decidir se quer ficar em algo mais contido, tratando seus personagens como uma metonímia de conflitos sociais maiores, ou se amplia seu escopo para se debruçar sobre questões maiores e acaba não tratando nenhum desses elementos a contento plenamente.
Ainda assim há muito para se apreciar, principalmente na dinâmica entre os personagens e como as tensões se constroem e se dissolvem entre eles. O incômodo de Amanda com a presença de George e Ruth na casa claramente tem um viés racista e Julia Roberts apresenta bem a indignação irracional que ela tem com a dupla, duvidando de cada palavra e sempre supondo malícia nas ações deles simplesmente por se tratarem de quem são, inclusive se recusando a crer que um homem negro teria as posses que George clama ter, sendo visível o embaraço de Amanda no dia seguinte quando ela vê o carro de luxo no qual ele chegou.
O filme tem uma cadência bem deliberada, nos fazendo experimentar o mesmo grau de informação que Clay e Amanda tem, acompanhando o passo a passo de suas descobertas sobre a catástrofe iminente, construindo aos poucos a impressão de que há algo errado, como a brusca chegada de um navio à praia, até momentos de pura tensão como a cena em que Clay vê um avião derrubar uma substância vermelha misteriosa sobre a estrada. Essa tensão é amplificada pelo modo como Esmail filma essas cenas, muitas vezes recorrendo a planos-sequência para mostrar o perigo se aproximando e a reação das pessoas em fuga. Vemos isso tanto na citada cena do navio conforme acompanhamos a família principal correr enquanto a enorme embarcação atropela a areia e tudo em seu caminho em uma longa tomada sem cortes. Vemos isso também na cena dos carros batidos na estrada conforme Amanda dirige para evitar os carros guiados por IA que vem em seu caminho, tudo sem cortes.
Mesmo nas conversas, com os personagens parados, a câmera de Esmail constrói um senso de inquietação com constantes mudanças no eixo da câmera, criando tomadas angulosas e descentralizadas que nos dão a impressão de que as vidas desses personagens são mostradas literalmente fora do eixo. Sim, em alguns momentos esses usos de angulação e movimento de câmera soam como floreios desnecessários, mas no geral são eficientes em nos deixar imersos na confusão mental de seus personagens.
Tematicamente o filme explora nossa dependência de computadores, como no fato de Clay sequer conseguir dirigir a uma cidade próxima sem o auxílio de GPS, e no modo como os EUA, apesar de não quererem admitir, é uma nação profundamente dividida, principalmente após a internet e toda a desinformação que vem com ela. Nesse sentido a trama também parece celebrar a mídia física como meio de preservação da memória e acervo, evidenciado na cena da coleção de discos de George ou no momento em que a filha de Amanda encontra uma coleção de DVDs ao final, finalmente conseguindo assistir o último episódio de Friends. Não deixa de ser irônico que um filme feito para streaming nos lembre que conteúdos que estão na internet podem desaparecer a qualquer momento, mas que a mídia física sempre estará acessível quando a temos em mãos.
O filme se sai bem quando lida com essas tensões de maneira implícita, como todo o embate entre George e Amanda na noite inicial, ou no desejo que Clay demonstra por Ruth apesar de obviamente não ser capaz de fazer nada a respeito. Por outro lado, essas ideias por vezes caem no excesso de didatismo, em especial no modo como Ruth está sempre mastigando essas tensões latentes, construídas em diálogos ou imagens, como se ela tivesse que explicar o tempo todo o que estamos vendo e ouvindo.
É possível notar isso quando Ruth conversa indignada com o pai por eles dois estarem dormindo no porão apesar de serem os donos da casa enquanto a família branca dorme no quarto principal em cima. É como se o filme não confiasse no espectador para perceber o simbolismo por trás dessas imagens e precisasse mastigar isso para nós. Claro, é possível pensar que a conduta de Ruth se dá por ela pertencer a uma geração mais combativa a respeito desses temas, mas a maneira como ela se expressa está em oposição com o resto do tom do filme. É mais um problema de texto do que da intepretação de Myha’la, que se sai melhor quando Ruth precisa ser mais contida em suas expressões, sendo capaz de dizer muito com um olhar ou um movimento da boca ao reagir a falas problemáticas de Amanda.
O filme acerta ao nunca reduzir esses personagens a meras representações de classe ou raça como fazem outras produções que exploram esse tipo de tensão social (tipo Triângulo da Tristeza), também evitando alguns moralismos simplórios (como em Batem à Porta). Ao invés disso, a narrativa dá tempo para que os personagens exibam diversas camadas e construam dinâmicas complexas uns com os outros que vão além de meramente confiar ou desconfiar um do outro. Mahershala Ali, por exemplo, traz uma eficiente ambiguidade para George, de um lado mostrando certa fragilidade de estar genuinamente assustado pelo que está havendo e uma serenidade pragmática no modo como ele lida com as desconfianças de Amanda. Por outro ele demostra ter um lado sombrio no modo pessimista conforme ele comenta sobre o que está acontecendo e como ele ocasionalmente deixa escapar informações que dão a entender que talvez ele saiba mais do que está revelando, nos fazendo desconfiar dele.
A questão é que quando o filme parece ter superado as tensões do encontro das duas famílias e decide tirar os personagens da casa, dando a entender que partiria para outras ideias, o filme rapidamente volta para a dinâmica das pessoas na casa e nesse momento parece andar em círculos e sua duração de duas horas e vinte soa mais do que era necessário. Quando chegamos ao terceiro ato e o filme passa a discutir como uma sociedade desmorona quando não há mais governo ou meios de comunicação para unificar todo mundo temos a impressão de que o filme vai começar a desenvolver essas ideias a partir do confronto entre Clay, George e o conspiracionista maluco interpretado por Kevin Bacon, mas não, o filme rapidamente encerra sem desenvolver isso, apenas apontando para a ideia.
Assim, O Mundo Depois
de Nós tem uma eficiente atmosfera de tensão e um elenco que explora as
nuances dos conflitos entre seus personagens principais, mas esbarra em um
excesso de didatismo e um olhar superficial para alguns temas que tenta
discutir.
Nota: 7/10
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