Trata-se de um documentário meramente laudatório, sem qualquer nuance ou interesse de tentar entender a personalidade do objeto do documentário. Tudo é posto para que Luísa seja vista como uma grande artista (sem nada de muito convincente para justificar essa visão) ou como uma grande coitada perseguida pela mídia (com um sensacionalismo exagerado que faz tudo soar artificial) para atrair nossa comiseração. É um produto marcado pela contradição de querer se expor intimamente e uma preocupação extrema em controlar a narrativa e imagem que cerca a cantora.
A cena inicial dá o tom dessa contradição. Sentando para falar com a equipe do documentário, Luísa pergunta se está bonita e pede para ver o monitor da câmera. É alguém que quer ser vista, ser adorada até, mas tem uma profunda insegurança ou medo de como será vista (talvez justamente porque ela quer ser adorada) e tenta controlar tudo que sai sobre si. Esse controle resulta em um documentário chapa branca, cujos entrevistados se restringem a um número pequeno de pessoas que trabalham direto com a cantora, como produtores e coreógrafos, que se limitam a dizer como ela é incrível e/ou sofrida. Como são pessoas cujo trabalho depende da cantora e tem interesse em vendê-la sob uma luz positiva, suas falas são suspeitas e pouco objetivas. Além disso, esse escopo pequeno de fontes dá a impressão de Luísa como alguém isolada no mundo da música, alguém que não muitos aliados ou defensores fora das pessoas mais próximas ou que simplesmente talvez não seja tão relevante quanto pensa ser.
São pouquíssimas vezes que o documentário sai desse círculo íntimo, ocasionalmente ouvindo alguns jornalistas e influencers, embora alguns desses sejam agenciados pela mesma empresa que cuida da carreira de Luísa. Na verdade, o único entrevistado minimamente interessante é Whindersson Nunes, que fala sem filtros a respeito do casamento fracassado com a cantora, admitindo seus vícios e falhas como marido de maneira bastante franca e aberta, parecendo genuinamente despreocupado de como isso será recebido pela audiência diferente de todo o resto das limitadíssimas fontes ouvidas. Até mesmo o documentário Vai Anitta, igualmente criticado por ser excessivamente chapa branca consegue encontrar momentos em que a cantora quebra a imagem midiática em torno de si, como na cena em que ela xinga descontroladamente sua equipe. Aqui, no entanto, tudo é feito para sempre passar a imagem mais positiva possível da pessoa retratada.
O documentário tenta construir a imagem de Luísa como uma espécie de vítima injustiçada da mídia e da internet, com os membros da equipe dela recorrendo a superlativos absurdos dizendo que ninguém passou o que ela passa ou foi perseguida como ela. Claro, perto dela o que foi o sofrimento de Wilson Simonal? Um cantor cuja carreira foi destruída foi uma falsa denúncia de que ele colaborava com o governo militar. Isso sem falar de vários outros artistas que foram presos, torturados ou exilados durante a ditadura. Considerando que apesar de todo o ódio que recebe online (e que deve mesmo ser combatido) ela ainda tem uma carreira aparentemente bem sucedida (ou assim diz o documentário) todas essas falas superlativas sobre Luísa soam forçadas, sensacionalistas e ignorantes quanto ao contexto musical do Brasil.
Tudo bem que nada justifique ou torne aceitáveis as absurdas ameaças de morte que a cantora recebeu por conta de seu divórcio com Whindersson ou ainda a revoltante tentativa de pessoas da internet em imputarem em Luísa a culpa pela morte prematura do filho do humorista com Maria Lina. Ainda assim, dizer que ninguém na música brasileira é ou foi perseguida como ela soa como um exagero para qualquer pessoa com o mínimo senso histórico a respeito do mundo da música.
Na verdade, o documentário parece passar batido do fato de que a cantora demonstra ter uma relação pouco saudável com esse lado mais negativo da fama e com os haters. Isso fica evidente na cena em que ela mostra revoltada o troféu de divórcio mais marcante que recebeu de um grande portal de notícias. É de fato abjeto que um veículo que se diz jornalístico tenha dado um “prêmio” como esse, mas, ao mesmo tempo, fica a pergunta do por que a cantora se dispôs a receber e guardar isso. Ela diz que guarda para lembrar como a imprensa é suja, mas tudo isso soa como uma decisão pouco saudável de se forçar a lembrar de momentos ruins de sua vida ao invés de focar nos positivos. Se o troféu está ali para que ela mostrasse o quanto é mal tratada, porque não usar o documentário para exercitar algum tipo de catarse e destruir o troféu diante das câmeras?
Outro problema do discurso da cantora e de seus assessores sobre como ela é excessivamente julgada na internet é que em nenhum momento ninguém pondera a respeito do nível exposição que a cantora impõe a si, compartilhando detalhes íntimos por conta própria na mídia. Não dá para ir na Ana Maria Braga e ler uma carta pessoal de término de relacionamento em rede nacional, expondo a traição do namorado, devassando completamente sua vida privada, eliminando qualquer limite entre sua persona pública ou privada e ainda assim pedir que as pessoas lhe deem privacidade. Ninguém a obrigou a fazer isso, foi uma escolha da artista se expor completamente na arena do debate público.
Parece que ela e a equipe confundem a noção de construir uma arte que reflete quem ela é como pessoa, dando uma impressão de proximidade com o público, e expor completamente cada detalhe de sua vida na internet para qualquer maluco analisar e julgar. Taylor Swift, por exemplo, consegue muito bem construir uma carreira em torno de canções que falam sobre sua vida pessoal sem, no entanto, devassar completamente sua intimidade revelando cada pormenor de seus relacionamentos. Ela cria uma impressão de proximidade, mesmo que, na prática, saibamos bem pouco de sua intimidade.
Os momentos em que a cantora fala sobre como se sente deprimida, comenta sobre a quantidade de remédios que toma e menciona recorrentes ideações suicidas soam menos como um momento de intimidade desvelado pelo olhar atentamente cuidadoso da câmera (como acontece com Val Kilmer em Val ou com Lady Gaga em Gaga: Five Foot Two) e mais como momentos cuidadosamente preparados e construídos para nos mostrar a fragilidade da protagonista. Nessas cenas a câmera sempre está perfeitamente posicionada em close no rosto da cantora, a iluminação é extremamente correta e tudo dá a impressão de que são falas previamente pensadas para tentar construir um senso de comiseração pela cantora, mas como tudo soa artificial o efeito é o inverso.
Alguns momentos em que o documentário tenta abordar o estado mental da cantora beiram a irresponsabilidade. Em um dado momento a vemos consumir Rivotril como se estivesse bebendo água e em nenhum momento é mencionado se ela tem o acompanhamento de um profissional, se aquela medicação foi receitada por alguém ou o cuidado que se deve ter com esse tipo de droga. Ela simplesmente consome o medicamento e a única intenção da cena parece ser, mais uma vez, tentar obter comiseração do público ao mostrar esse estado de fragilidade psíquica. Não há qualquer discussão sobre tratamento psicológico, saúde mental ou os cuidados desse tipo de medicamento.
Outra frente do documentário é falar do trabalho dela como cantora e compositora. Mais uma vez, o esforço é mostrá-la como um prodígio inigualável, mas, como tudo no documentário, é pouco convincente. A defesa do trabalho artístico da cantora começa pela sua suposta capacidade de costurar várias referências, com um entrevistado mencionando o quanto é surpreendente que uma garota tão jovem fizesse um clipe citando uma entrevista de Clarice Linspector no fim da vida, ignorando que a dita entrevista viralizou na internet anos atrás, virou meme e qualquer pessoa da faixa etária de Luísa provavelmente teve contato com o vídeo. Há inúmeras falas sobre como ela usou samples de Rita Lee em músicas e coisas assim, como se o ato de apertar um copia e cola automaticamente tornasse alguém um grande artista.
Sim, temos vários exemplos de artistas que constroem carreiras em cima de citações. Cineastas como Tarantino ou Brian de Palma constantemente citam outros filmes e realizadores em seus trabalhos. A questão é que essas pessoas usam essas bricolagens de referências a serviço de um estilo próprio e de uma maneira bem pessoal de combinar e olhar para esses discursos e não citando por citar como parece ser o caso das canções e clipes da maneira como são apresentados no documentário. Se citação por si só tornasse uma peça artística excelente Shrek seria o filme mais genial de todos os tempos.
Outro argumento em defesa da arte da cantora vem do fato dela compor as próprias canções, uma argumentação que parte do non sequitur de que se foi escrito pelo próprio artística, então é automaticamente bom e se não é, então é automaticamente inferior. Ora, algumas das mais célebres canções de Maria Bethânia ou Gal Costa não foram compostas por elas. Uma das mais famosas canções de Marisa Monte foi composta por quatro pessoas. Uma das músicas mais marcantes da fase final da carreira de Johnny Cash, Hurt, não foi composta por ele e sim pelo Nine Inch Nails, mas Cash colocou tanto de si na interpretação que hoje poucos lembram que não é dele. Whitney Houston é uma das cantoras mais celebradas da música estadunidense e nunca escreveu uma linha sequer, mas sua personalidade e o diálogo das canções com sua trajetória é tão bem construído que pouca gente lembra que I Will Always Love You é de Dolly Parton e não dela. Compor não faz de ninguém automaticamente um bom artista, curadoria de acervo e capacidade de interpretar canções são igualmente importantes.
A impressão é que esses argumentos rasos são usados como uma defesa para ela não ter alcançado o sucesso esperado apesar de ter seguido o molde de divas pop como Taylor Swift. O raciocínio para ser o de que se ela fez tudo certo e o sucesso não veio, então certamente é culpa dos haters de internet que não entendem o valor de sua arte.
Por fim o documentário tenta abordar as polêmicas da carreira dela, mas como se trata de uma produção bem chapa branca, passa rapidamente por essas questões. A relação com Vitão quase não é citada, o midiático término com Chico Moedas é relegado a alguns letreiros (segundo uma reportagem da Veja a cantora teria exigido que fossem retiradas as menções a ele) e o processo por injúria racial é abordado de maneira bem questionável. Filmado com uma câmera menos estável e visualmente diferente de todo o resto do filme, o depoimento de Luísa sobre a injúria racial soa como algo colocado de última hora no documentário.
A cantora já tinha se recusado a falar sobre isso em várias entrevistas, como a dada no Fantástico, então é estranho que ela tenha resolvido se posicionar aqui, onde não há ninguém para questionar ou contrapor sua fala. A fala em si contem desculpas que não soam como desculpas (da maneira como ela narra parece que ela apenas pediu uma água), tenta sugerir que a outra parte só estava interessada em dinheiro ao citar que o processo aconteceu só dois anos depois quando ela era mais famosa, repete clichês vagos de internet tipo sobre a importância de ser antirracista e algumas outras coisas que soam desconectadas do tema em questão, como o momento em que ela diz que está agindo por reparação e diz que abriu um restaurante (o que isso tem a ver?).
O documentário é bem estranho em termos de montagem e como costura as imagens e depoimentos, muitas vezes contradizendo as falas dos entrevistados mesmo não sendo essa a intenção. Em um dado momento, o pai de Luísa fala de como ela era uma criança que teve uma infância diferente, que não brincava muito com outras meninas e logo depois corta para várias imagens de arquivo dela brincando de pega-pega e outras coisas cercada de outras garotas. É o tipo de expediente que se usa quando se quer colocar dúvida sobre o depoimento de alguém, mas considerando que o documentário nunca pinta de fato essas pessoas como narradores pouco confiáveis esse tipo de escolha de montagem soa simplesmente equivocado.
Há uma série de depoimentos, inclusive, que poderiam render discussões interessantes, mas que o documentário passa batido. Em uma entrevista a mãe de Luísa menciona como ser cantora é um sonho que ela sempre teve e que projetou isso na filha. É uma fala que daria margem para questionar o quanto que a carreira artística foi uma decisão da própria Luísa ou algo construído ou imposto pelos pais, mas são perguntas que o documentário nunca faz porque seu interesse não é de fato entender sua personagem e sim fazer um relato meramente laudatório.
Partindo de um interesse que parece ser o de funcionar como
uma publicidade expandida para cantora retratada, Se Eu Fosse Luísa Sonza soa menos como uma produção que tem algo a
dizer ou ponderar sobre sua protagonista e mais como um retrato tão chapa
branca que soa manipulativo, raso e pouco convincente. Ao invés de nos
aproximar da cantora, nos dá mais razões para nos mantermos longe dela em termos artísticos e de esperar pelo pior em termos pessoais, já que ela claramente não está bem e não parece estar sendo exatamente ajudada ou levada por caminhos saudáveis pelas pessoas ao seu redor. Os problemas emocionais dela são explorados de maneira sensacionalista como se servissem apenas para atrair simpatia sem muito cuidado em discutir temas tão delicados.
Nota: 1/10
Trailer
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