quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Rapsódias Revisitadas – Sindicato de Ladrões

 

Crítica – Sindicato de Ladrões

Análise – Sindicato de Ladrões
Em uma determinada cena de Sindicato de Ladrões, o protagonista menciona que ter uma consciência é algo que pode levar uma pessoa à loucura. O filme seminal de Elia Kazan estrelado por Marlon Brando comemora seus 70 anos de lançamento em 2024 e suas reflexões sobre consciência de classe e manter seus princípios diante da corrupção ao nosso redor seguem válidos.

A trama acompanha Terry (Marlon Brando), um ex-boxeador que passou a trabalhar para os mafiosos que controlam o sindicato dos portuários em New Jersey. Quando uma pessoa próxima a Terry é morta por falar contra esses corruptos líderes sindicais e Terry se aproxima da irmã do morto, o ex-boxeador começa a se questionar se proteger esses mafiosos é mesmo a melhor escolha. A narrativa é levemente baseada na história real de um portuário que tentou derrubar o sindicato corrupto de onde trabalhava, mas se na vida real ele fracassou, na ficção Kazan tece uma trama que nos lembra da força que os trabalhadores tem quando se unem, mesmo que seja contra suas supostas lideranças.

A narrativa mostra o cotidiano implacável dos trabalhadores portuários que praticamente precisam lutar entre si por uma vaga de trabalho nas docas diariamente. Isto é, a menos que estejam nas graças dos corruptos gangsteres que controlam o sindicato da categoria e determinam quem consegue ou não as vagas de trabalho. Todo mundo sabe como a coisa funciona, mas todos se silenciam porque precisam daquele trabalho para minimamente conseguirem sobreviver.

Brando é excelente em construir um sujeito que vive entre a resignação e a amargura. Alguém que se conformou com aquela realidade atroz depois de ver seus sonhos e ambições erodirem sob seus pés. Nesse sentido, o trabalho de Eva Marie Saint como Edie, interesse romântico de Terry, funciona para desarmar o desencanto do personagem, já que ela consegue manter a energia, vitalidade e esperança a despeito de tudo que acontece ao seu redor. É na proximidade com Edie que começa o despertar de Terry de que talvez haja mais na vida do que a resignação silenciosa e de que aqueles a quem deve lealdade não são benfeitores, mas os responsáveis por destruírem as vidas de pessoas como ele e Edie.

Isso fica evidente na famosa cena do “eu poderia ter sido um lutador” na qual Terry fala com o irmão Charley (Rod Steiger) sobre a decisão de testemunhar contra ele e os líderes sindicais. Na fala, Terry deixa claro seu desencanto com a vida, a amargura por um sucesso esportivo que nunca se concretizou e a realização de que foram pessoas que ele confiava e respeitava como Charley, que o convenceram a entregar lutas por alguns pequenos ganhos imediatos, os responsáveis por sua situação. É como se naquele momento, enquanto externa em voz alta seus sentimentos, Terry se desse conta de que aquelas são o motivo dele não ter um futuro e não um meio de sobreviver como pensava antes.

Essa tomada de consciência se reflete no final quando Terry confronta publicamente o líder corrupto do seu sindicato e toma uma surra de seus capangas. Os demais trabalhadores inicialmente ficam em silêncio diante da violência que presenciam, mas logo saem em auxilio de Terry, percebendo que qualquer um deles poderia estar na posição do protagonista e que sem a complacência deles os mafiosos não teriam poder algum. A tomada final da porta do galpão do porto se fechando depois que os trabalhadores entram parece evocar o curta dos Lumiére, um dos primeiros filmes já feitos, dos trabalhadores saindo dos portões de uma fábrica. É como se Kazan refletisse sobre o papel do cinema em retratar a vida dos trabalhadores e como, de certa forma, o cinema nasce olhando para esse universo.

A despeito de seus grandes méritos, o legado do filme acabou cercado de alguma controvérsia anos depois de seu lançamento com a admissão de Elia Kazan sobre a sua motivação para fazê-lo. O diretor teve a ideia de realizar Sindicato de Ladrões em 1954 depois de aceitar colaborar com o governo dos EUA e testemunhar perante o comitê de atividades antiamericanas revelando os nomes de todas as pessoas que conhecia envolvidas com organizações comunistas ou de esquerda.

A ação foi vista como uma traição e Kazan foi ostracizado em certos círculos da indústria. Considerando como o macarthismo e a paranoia anticomunista destruía a vida de qualquer pessoa suspeita de ter proximidade com entidades do tipo, é compreensível que a decisão de Kazan não tivesse sendo vista com bons olhos. Que ele tenha feito um filme comparando os intelectuais de Hollywood com mafiosos assassinos tornou a produção alvo de críticas. Espectadores e críticos consideraram que essa “agenda oculta” macula o legado da produção, com o crítico Jonathan Rosenbaum classificando como imperdoável que Kazan tenha utilizado Sindicato de Ladrões para justificar as próprias ações de entregar colegas ao governo.

Por outro lado, os sentidos das obras não são apenas aqueles pensados por seus realizadores. Podemos interpretar um produto artístico não a partir do que o realizador diz a seu respeito, mas do que emerge da própria obra. Independente da motivação de Kazan (e a verdade é que sabemos muito pouco sobre o motivo da maioria dos cineastas fazerem os filmes que fazem) é possível ver em Sindicato de Ladrões uma crítica à exploração do trabalhador e das duras consequências disso, bem como um chamado à consciência e união de classe (inclusive contra pelegos que clamam agir em prol de seus interesses) como o único caminho para a melhoria das vidas dos proletários. Apesar de motivado por sentimentos anticomunistas, o filme não deixa de ser uma defesa da força do trabalhador.


Trailer


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