Em 2002 o diretor Marcos Pimentel filma três crianças. Julia e Christian moram no lado pobre da barragem, enquanto Zé Thomaz vive no lado de classe média. Essas crianças passam alguns dias na casa do outro para experimentar as realidades diferentes. Vinte anos depois o filme retoma o contato com esses personagens e usa a vida deles como uma metonímia para as mudanças no Brasil ao longo dessas duas décadas.
O filme se estrutura ao redor das falas desses personagens no presente falando sobre o estado atual de suas vidas e também comentando as imagens do passado, pensando no quanto suas histórias se transformaram nesse período. Focando no relato de Julia, Christian e da mãe deles, percebemos como eles foram, para o bem e para o mal, afetados por transformações urbanas e políticas postas em marcha no Brasil nos últimos anos. A mãe de Julia agora vive em um conjunto habitacional, ainda na parte humilde da cidade, mas não mais na casa construída de improviso.
As falas dela e de Julia sobre a demolição de sua casa pela prefeitura e a falta de assistência que tiveram na transição para a nova habitação revelam a gentrificação das grandes cidades e como o poder público desloca essas pessoas com a promessa de uma vida melhor (o que não deixa de ser verdade), mas por trás também tem um interesse em higienizar a paisagem urbana.
Apesar da mesma origem, o filme mostra o contraste na trajetória de Julia e de Christian. Se ela construiu uma família e um lar apesar das dificuldades que constantemente se impõem, ele passou a vida entrando e saindo de abrigos e prisões por conta de seu envolvimento com o crime e com as drogas. Cada um tem problemas distintos, mas nenhum deles é livre de dificuldades. Não deixa de ser curioso que seja Christian a exibir mais consciência de classe e uma leitura mais consistente das transformações do Brasil nos últimos anos do que a irmã, como fica evidente na cena em que eles discutem política e a vindoura eleição de 2022. Talvez por ele ter mais contato com diferentes experiências na rua e fora dela e ficar apartado de bolhas em redes sociais tenham feito ele se apartar de certos sensos comuns.
O filme nos informa que o garoto de classe média resolveu não voltar para filmar vinte anos depois a despeito de meses de conversas com o diretor para que ele retornasse. A escolha pelo silêncio, por não querer dialogar e se reencontrar com os dois jovens periféricos com os quais interagiu de maneira tão descomplicada quando criança revela muito sobre o estado do Brasil em 2022 e o que mudou nos últimos vinte anos. Um Brasil em que as divisões implícitas de classe ou raça se tornaram mais explícitas e fronteiras simbólicas se tornaram mais literais.
Em 2002 parecia que caminhávamos para uma consolidação de uma democracia recente, mas que dava sinais de maturidade com uma eleição em que saímos de um governo de centro-direita liderado por um professor e acadêmico para um governo de centro-esquerda liderado por líder trabalhista com uma transferência pacífica de poder. Em 2022, no entanto, a impressão de uma democracia plural, onde diferentes perspectivas podem dialogar e coexistir e nossos cidadãos estariam dispostos a se colocar no lugar do outro foi substituído por um abismo ainda maior e um senso de divisão ainda mais severo.
Nesse sentido há um simbolismo poderoso na cena em que Christian e Julia destroem as fotos de infância ao lado do agora ausente Zé Thomaz que se recusou a falar com eles. A destruição dessas imagens nos mostra a destruição desse projeto de nação mais igualitário e um desalento imenso com o agravamento dos abismos e da falta de diálogo entre os diferentes estratos da nossa sociedade.
Por outro lado as narrações do filme pecam pelo excesso de didatismo, muitas vezes explicando de maneira muito mastigada aquilo que as imagens já estão nos informando. Um exemplo é a fala que vem depois da cena da queima das fotos que explica como o Brasil tornou explicito um abismo que estava implícito, sendo que isso já era perceptível em momentos anteriores e o filme não precisaria dizer isso explicitamente, quase como se não confiasse no público para perceber essas ideias.
Algumas entrevistas com os personagens se estendem demais em falas com câmera estática, sem transição para outras imagens ou cenas de cobertura que fazem tudo soar mais moroso do que de fato é. Há uma cena longa em que a mãe de Christian conversa com ele via telefone que se beneficiaria da inserção de legendas na fala de Christian, já que o áudio do viva-voz do celular não está perfeitamente inteligível.
Ainda assim, Amanhã
usa sua estrutura temporal para produzir uma reflexão sobre as mudanças na
sociedade brasileira ao longo das últimas décadas e como a esperança de outrora
parece ter dado lugar a uma divisão social ainda maior.
Nota: 7/10
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