terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Crítica – Zona de Interesse

 

Análise Crítica – Zona de Interesse

Review – Zona de Interesse
O diretor Jonathan Glazer já explorou imagens cruéis e aterrorizantes em filmes como Reencarnação (2004) e Sob a Pele (2013), então a ideia dele explorar o nazismo e os campos de concentração me deixou curioso para ver como ele mostraria os horrores do genocídio perpetrado pelos nazistas. Diante de um horror tão real, as escolhas de Glazer neste Zona de Interesse, que adapta um romance escrito por Martin Amis, vão na contramão do que se esperaria conhecendo seus trabalhos anteriores.

O Naturalismo

O diretor opta por nunca mostrar o que acontece em Auschwitz, ao invés disso focando toda a trama no cotidiano da família do oficial nazista Rudolf Hoss (Christian Fiedel) e sua família que vivem em uma luxuosa casa de dois andares ao lado do campo de concentração, separados por um alto muro. Ao mostrar a normalidade da vida dos nazistas que não apenas moravam ao lado dos campos como gerenciavam o extermínio o filme torna todo o extermínio ainda mais inaceitável. Enquanto famílias inteiras morriam nos campos, Rudolph passeava de canoa com seus filhos em um riacho próximo e sua esposa, Hedwig (Sandra Huller, de Anatomia de Uma Queda), pensa em que flores plantar no jardim. Essa normalidade diante do horror me lembrou um pouco o argentino O Clã (2015), de Pablo Trapero, que se passava durante a ditadura argentina e também contava a história de uma família que vivia uma vida de conforto às custas do horror que acontecia adjacente à sua residência.

Essa normalidade do cotidiano é ressaltada pelo naturalismo extremo com o qual Glazer filma. Com uma fotografia que preza pela luz natural e uma paisagem sonora marcada pelo som direto, que deixa todos os ruídos ambientes para que os escutemos, o filme evita qualquer estilização das imagens para tornar o cotidiano dessas pessoas o mais banal e menos imaginativo possível para ressaltar a natureza comum desses indivíduos. É um lembrete que genocidas e fascistas não são monstros que vivem apartados da sociedade, eles vivem como pessoas comuns, que estão ao nosso redor, são nossos vizinhos ou colegas de trabalho, os vemos brincar com seus filhos e animais de estimação e ainda assim são capazes de defender o genocídio de uma população inteira.

O filme, no entanto, nunca trata Rudolf como alguém que meramente seguia ordens, deixando claro que ele dava ordens (alguém chega a dizer que ele tornou realidade os pensamentos do regime) e tem plena noção do que estava fazendo. Em uma reunião no qual é explicado como funcionariam as fornalhas é curioso perceber as escolhas especificas de linguagem usadas para se referir a todo o aparato, fazendo tudo soar o mais impessoal possível e nunca mencionando que pessoas seriam colocadas ali, como que para afastarem os próprios pensamentos do que estariam fazendo. Toda a conversa é conduzida como se estivessem falando de uma fábrica, de algo a ser produzido em escala industrial e não de todo um aparato feito para matar pessoas e não deixar quaisquer vestígios delas.

A ciência de Rudolf e de sua família a respeito do que estava acontecendo fica evidente em vários outros momentos. Em uma cena vemos Rudolf satisfeito em sua mesa contando vários tipos de cédulas. Certamente dinheiro confiscado dos prisioneiros dos campos e que o nazista não tem qualquer receio de tomar para si. Do mesmo modo, quando Hedwig aparece contente com seu novo casaco de pele, o filme deixa claro que ela sabe de onde ele veio. É como se eles não importassem com toda a morte ao seu redor desde que eles possam manter todo o conforto material e financeiro que desfrutam. Não é à toa que Hedwig insiste que o marido lute para não ser transferido porque não quer deixar a confortável propriedade na qual vive ao lado dos campos de concentração.

A Sobrevivência das Imagens

Durante boa parte do filme os campos sequer são vistos, com a fumaça deles ocasionalmente visível sobre o muro que os separa dos Hoss funcionando como um lembrete soturno do que está ocorrendo enquanto aquela família vive uma bucólica existência de classe média. A produção, no entanto, mostra o espaço além dos muros de duas maneiras. Uma são em imagens noturnas, capturadas sob um filtro de visão noturna preto e branco que mais parece que estamos olhando um negativo de película, uma oposição sombria à natureza que cerca os Hoss. Esses segmentos mostram uma garota deixando frutas em áreas em construção para os trabalhadores judeus forçados a trabalhar nos campos. As imagens são alternadas com cenas de Rudolf lendo contos de fada para filha contrapondo a fantasia e a ludicidade que a filha de Hoss experimenta ao lado do pai com os horrores indizíveis daquela menina que tenta de alguma forma ajudar os prisioneiros (e que foi inspirada em uma pessoa real que o diretor conheceu).

A outra maneira é a cena final em que vemos Auschwitz no presente, com funcionários cuidando das exposições e memoriais construídos para lembrar o extermínio que aconteceu ali. A escolha de mostrar os ambientes internos do campo apenas no presente lembra a decisão do documentarista Claude Lanzmann em evitar imagens de arquivo e só mostrar imagens dos campos no presente no seminal Shoah (1985). Ao mostrar o presente, ambos os filmes falam da sobrevivência da memória.

Pensar na sobrevivência da memória e das imagens que lhe servem de índice é importante porque um genocídio na escala do Holocausto funciona como um duplo processo de violência. De um lado a violência provocada pelo extermínio e de outro a violência do apagamento dos registros desse genocídio para que ao final fosse como se essas pessoas nunca tivessem existido. Como quem ia para as câmaras não sobrevivia, nos resta olhar para o que restou como Glazer mostra aqui, as pilhas de sapatos, as muletas e outros vestígios deixados pelos que foram exterminados. Esses farrapos de roupas são uma resistência à violência desse apagamento Se é difícil representar em extermínio em imagens, se há algo de inimaginável ou indizível neles, essas imagens do presente servem para um convite à fabulação. Se o projeto nazista era de um apagamento, esses vestígios dirigem-se a essa natureza indizível e inimaginável e a refutam. Eles nos confrontam com o pouco que sobrou e nos põem a imaginar os horrores perpetrados.

Ao mostrar o prosaico, Zona de Interesse amplifica o horror do Holocausto, provocando e chocando não por imagens explícitas de extermínio, mas pelo cotidiano banal daqueles que o perpetraram.

 

Nota: 10/10


Trailer

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