segunda-feira, 18 de março de 2024

Crítica – Estranho Caminho

 

Análise Crítica – Estranho Caminho

Review – Estranho Caminho
Dirigido por Guto Parente, Estranho Caminho parece ser sobre a experiência da pandemia de Covid-19. Inicialmente temi que, como muitos filmes brasileiros recentes, a urgência de tratar uma crise contemporânea deixasse a produção tão presa a esse contexto que não comunicasse nada fora dele. Felizmente não é o caso e Estranho Caminho, na verdade, acaba sendo mais sobre nossa relação com a morte, usando a pandemia apenas como um pano de fundo sobre esses temas.

A trama é focada em David (Lucas Limeira), um jovem cineasta brasileiro radicado em Portugal que volta para sua cidade natal para apresentar seu longa em um festival de cinema. Quando a pandemia estoura e o lockdown é decretado no Brasil ele fica sem ter como voltar para Portugal e sem hospedagem na cidade. Sem opção, ele tenta entrar em contato com o pai, Geraldo (Carlos Francisco, do excelente Marte Um), com quem não fala há anos.

A produção constrói a jornada de David ao redor de um clima de surrealismo e estranhamento. As paisagens urbanas completamente deserta pelas quais David transita evocam algo de macabro, principalmente à noite quando a fotografia usa muitos contrastes entre luz e sombra. Por outro lado, as interações que ele tem com muitos personagens são investidas de um humor bizarro, como se os indivíduos ao redor de David não seguissem o mínimo de conduta humana básica. Toda a conversa de David com uma escrivã da Polícia Civil conforme ele tenta denunciar o roubo de seu celular. As perguntas que a policial faz soam como se ela estivesse em uma realidade completamente diferente da de David.

De certa forma isso evoca o estranhamento dos momentos iniciais da pandemia, quando nosso cotidiano mudou radicalmente da noite para o dia e não parecíamos mais estar vivendo em nosso mundo e sim em uma realidade paralela. Esse misto de tensão, desconforto e estranhamento também está presente na relação de David com o pai. Como falei no início, o filme é menos sobre a pandemia e mais sobre como o protagonista se relaciona com outros elementos ao seu redor, principalmente o pai, com o contexto da pandemia servindo de estopim para tudo isso.

Sem falar com o pai, Geraldo, há anos, as conversas entre eles são constantemente desconexas, com o respondendo a David de maneira vaga, tratando-o como um estranho e impondo ao filho suas várias manias. Há um certo humor no modo como Geraldo age como um homem idoso e solitário que se acostumou a viver de um certo modo, desenvolvendo várias manias e tendo seu cotidiano perturbado por essa pessoa estranha que é o filho. Logicamente existe também uma tensão de David querer se aproximar desse pai que nunca esteve presente e esse pai parece fazer questão de se manter distante.

Há uma reviravolta no terço final da produção que leva a trama a caminhos inesperados e te faz pensar, como, em retrospecto, a narrativa estava dando vários indícios desse desdobramento. A reviravolta obriga David a tomar conhecimento de elementos desconhecidos da vida do pai, a se reaproximar dele mesmo em sua ausência pelos vestígios que ele deixou, sejam os livros de autoajuda que escreveu, seja nas falas das pessoas que conviveram com ele.

É uma análise complexa, com humor, absurdo, tensão e emotividade, sobre como lidamos com as ausências de pessoas importantes em nossas vidas e o caminho tortuoso que precisamos tomar para ficar em paz com isso.

Esse texto faz parte de nossa cobertura do XIX Panorama Internacional Coisa de Cinema.


Trailer


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