domingo, 17 de março de 2024

Crítica – Sem Coração

 

Análise Crítica – Sem Coração

Review – Sem Coração
Certos filmes te prendem não pela sua trama em si, mas pelo modo como apresentam essa trama. Sem Coração é um desses casos. Dirigido por Nara Normande e Tião, com um roteiro levemente baseado na juventude de Normande, a produção conta uma típica história de amadurecimento, despertar afetivo e perda de inocência. É um tipo de narrativa que já vimos aos montes, mas, ainda assim, conquista pela sensibilidade na construção dos arcos de seus personagens.

A narrativa se passa durante o verão de 1996 na região litorânea de Alagoas. Tamara (Maya de Vicq) está para ir para a faculdade em Brasília, então aproveita seu último verão com os amigos. Eles passam os dias na praia, em festas e entrando em imóveis vazios ou abandonados no lugar. Tamara acaba voltando a sua atenção para uma garota que seus amigos chamam de Sem Coração (Eduarda Samara) e que se mantem distante do resto da juventude do local. Tamara decide então se aproximar da garota.

Há uma química intensa entre o elenco jovem que compõe a rede de amigos de Tamara, convencendo de que são garotos que se conhecem há muito tempo e que andam juntos há anos. Essa rede de afeto se torna importante conforme esses jovens vão lidando com descobertas de sexualidade ou com as consequências de atos irresponsáveis. Nesse sentido, a trama é eficiente em dar arcos para os vários amigos da protagonista. Um exemplo é Galego (Alaylson Emanuel) que inicialmente parece do bad boy do local, mas que mostra um lado mais sensível, como na cena em que ele cuida das plantas do pai de Tamara. Posteriormente aprendemos como sua autoconfiança e conduta “gângster” funciona como uma fachada para sua insegurança fruto, entre outras coisas, de uma relação ruim com um pai violento.

Atentar para as violências ao seu redor é parte do arco de Tamara, que vai percebendo como questões de gênero, raça e classe impõem consequências violentas para muitos de seus amigos. São temas que o filme lida com muita sensibilidade, evitando didatismos ou exposições muito explícitas, confiando que o espectador perceba as desigualdades e preconceitos em jogo sem parar para palestrar para a audiência.

As tentativas de Tamara de se aproximar de Sem Coração servem para ilustrar tanto as diferenças entre elas, mas também certas semelhanças. O modo como as duas são enquadradas através da fenda de um imóvel em ruínas, por exemplo, ilustra o abismo de classe e raça que separa as duas. Tamara é uma garota branca indo para uma universidade de prestígio, Sem Coração é uma menina negra filha de um pescador e sem qualquer outra perspectiva ou chance aparente de transformar sua vida.

Conforme elas se aproximam e vemos que há mais do que amizade entre as duas, o filme revela os sentimentos que aproximam as personagens. Os pesadelos que elas têm com uma baleia morrendo encalhada na praia podem ser entendidos como metáfora para o sentimento de estagnação das duas e que ficar ali, principalmente diante da homofobia que viram amigos sofrerem, pode significar a perdição delas.

As duas constroem uma cumplicidade silenciosa entre elas, no qual muito não é dito explicitamente, inclusive no final em que Sem Coração dá algo que nunca vemos para Tamara. O filme acerta em manter certo mistério quanto a Sem Coração, deixando certos elementos à nossa interpretação sem dar uma explicação direta para a sua cicatriz no peito ou outros elementos de sua personagem. Esse senso de mistério é também construído pela interpretação de Eduarda Samara, cuja expressão inescrutável revela alguém acostumada a guardar os sentimentos dentro de si e a externar pouco como se sente nos deixando incertos do que a move. É justamente quando Sem Coração encontra algo que faz seu coração se mover que ela encontra motivação para sair do estado de apatia e conformismo que ela parecia se encontrar.

A tomada final das duas deixando a cidade em veículos diferentes sintetiza as aproximações e diferenças entre ambas. Em como elas veem a necessidade de ir embora daquele local, principalmente depois de perceberem os sentimentos que tem uma pela outra, como essa relação as modifica, mas também de como as perspectivas de mudança para as duas são dessemelhantes por conta do contexto em que ambas estão inseridas.

Esse texto faz parte de nossa cobertura do XIX Panorama Internacional Coisa de Cinema.


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