sexta-feira, 8 de março de 2024

Rapsódias Revisitadas – A Entrevista

 

Análise – A Entrevista

Resenha - A Entrevista
Lançado em 1966 e dirigido por Helena Solberg, o curta documental A Entrevista se estrutura ao redor de várias conversas de mulheres de classe média alta, com idades variando entre 19 e 27 anos. Essas mulheres falam de dilemas caros à época, como o papel da mulher na sociedade, entre o que se espera delas e o pensamento ainda em construção sobre sexo, casamento, virgindade, formação profissional, emancipação e outros temas do cotidiano feminino da época.

As vozes dessas mulheres estão fora de quadro, já que elas não quiseram mostrar seus rostos ou nomes no filme. Uma decisão compreensível considerando que em 1966 mulheres falando de sexo ou o desejo de uma carreira eram temas relativamente tabu e serem vistas conversando sobre isso poderia afetar a reputação das entrevistadas. Enquanto ouvimos essas entrevistas, o filme nos mostra fotografias de diferentes mulheres e imagens de uma mulher se preparando para seu casamento. A noiva é a cunhada da diretora, Glória Solberg, e é a única entrevista com som sincrônico, em que vemos a pessoa que está falando.

O uso da voz em off aqui vai na contramão do que os documentários da época faziam. Em geral o off era (em certa medida ainda é) o espaço da voz do narrador, uma voz única que serve como fio condutor da narrativa. Aqui as vozes são variadas e apresentam pontos de vista de diferentes vieses. Não há, no modo como Solberg apresenta esses depoimentos em off, a pretensão de apresentar uma verdade inequívoca nem de trazer uma interpretação definitiva da realidade ou de algum aspecto da sociabilidade. A variedade de depoimentos é deixada para que os espectadores dialoguem com as diferentes proposições postas em cena.

Os depoimentos são apresentados em blocos temáticos, apresentando a visão de diferentes mulheres sobre um determinado tópico. Essas opiniões muitas vezes se mostram em contradição umas das outras, revelando visões opostas acerca dos temas que estão sendo comentados. Essa escolha da diretora parece feita justamente para botar em questão ideias monolíticas sobre o comportamento feminino e como as próprias mulheres se enxergam e veem seu papel na sociedade. Nesse sentido, o curta de Solberg serve como um lembrete de que não existe um pensamento único entre as mulheres e que nem todas encaram da mesma maneira o papel e o lugar ao qual as mulheres são colocadas em nossa sociedade.

São noções que parecem dialogar diretamente com o seminal livro A Mística Feminina, escrito por Betty Friedan, lançado em 1963, três anos antes do curta de Solberg. Assim como texto de Friedan trabalhou para questionar um conjunto de certezas sedimentadas em nossa sociedade patriarcal, revelando depoimentos de várias mulheres comentando sobre sua realidade e o que era esperado dela, o filme de Solberg opera em um sentido e uma estrutura semelhante. Não sei se a diretora foi diretamente inspirada por essa obra, não pesquisei isso à fundo, mas há um paralelo claro no modo como os dois trabalhos se movem de maneira semelhante para desestabilizar a ideia mistificada a respeito do lugar da mulher na sociedade e o que é esperado dela.

É curioso que um filme brasileiro que tenha tantas similaridades com um texto que foi um dos definidores do feminismo na segunda metade do século XX tenha sido deixado de fora dos cânones da história do cinema brasileiro. Só nos últimos, graças a pesquisadoras como Karla Holanda, que se dedicam aos cinemas feitos por mulheres, é que foi resgatada a importância das discussões levantadas pelo curta de Solberg. O modo como Solberg e outras diretoras do cinema brasileiro, como Adélia Sampaio ou Vera Figueiredo raramente são colocadas junto aos filmes e realizadores canônicos do nosso cinema é um duro lembrete de como a história do cinema é escrita sob uma perspectiva masculina e privilegia olhares masculinos.

Se durante boa parte do filme é construída essa noção de uma abertura, de uma pluralidade de posicionamentos femininos, a cena final faz uma dura contraposição a isso ao trazer imagens ao golpe militar de 1964 e como ele foi possibilitado por ações de grupos conservadores da sociedade civil que, entre outras coisas, defendiam justamente a visão monolítica do papel da mulher. A oposição entre esse final e o restante do filme serve como um lembrete não só do retrocesso civilizatório da ditadura militar brasileira, mas de como tentativas de questionar a estrutura patriarcal da sociedade são constantemente rechaçadas e tratadas como algo abjeto.

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