segunda-feira, 15 de abril de 2024

Crítica – Guerra Civil

 

Análise Crítica – Guerra Civil

Review – Guerra Civil
O diretor Alex Garland sempre traz elementos provocadores em seus filmes e isso ajuda a torná-los marcantes mesmo quando o resultado final não atinge plenamente seu potencial como em Aniquilação (2018) ou Men: Faces do Medo (2022), produções que, embora competentes, não tiveram o mesmo impacto que sua estreia na direção com Ex Machina: Instinto Artificial (2014). Guerra Civil tinha potencial para alcançar esse mesmo patamar com uma trama sobre os Estados Unidos divididos por um conflito interno.

A narrativa se passa em um futuro próximo no qual diferentes facções se separaram do governo dos Estados Unidos e agora lutam para derrubar o governo e tomar o controle do país. O governo federal está nas cordas, a guerra está praticamente perdida. Os jornalistas que cobrem a guerra praticamente não tem mais histórias para contar. O repórter Joe (Wagner Moura) e a fotojornalista Lee (Kirsten Dunst) decidem ir até Washington D.C para tentar uma entrevista com o presidente, talvez a única matéria que resta na guerra. Para isso terão que atravessar pelo meio do front de batalha entre regiões cheias de conflito. Na viagem eles são acompanhados pelo veterano repórter Sammy (Stephen McKinley Henderson) e a fotógrafa novata Jessie (Cailee Spaeny).

Apesar da premissa evocar uma discussão centrada nas divisões que separam as pessoas e no clima de polarização que toma os EUA (e vários outros países, incluindo o Brasil) por conta do avanço de uma retórica intolerante, sectária e reacionária, o foco do filme é mais sobre jornalismo e o ethos do jornalismo de guerra. Mais especificamente o filme pondera sobre a construção e representação de imagens da guerra. Em como elas são produzidas e tentam, mas nem sempre conseguem, dar conta da brutalidade do conflito ou como podem ser estetizadas para chocar sem necessariamente produzir uma reflexão no espectador.

Isso é ilustrado principalmente por meio de Lee. Antes mesmo que a personagem diga ou faça qualquer coisa é possível sentir seu desencanto e dureza em relação ao mundo pelo olhar opaco que Kirsten Dunst traz consigo. A postura e movimento da personagem já transparecem anos de cansaço cobrindo conflitos e o senso de alguém que viu mais brutalidade do que qualquer pessoa poderia suportar e se fechou para o mundo, perdendo qualquer reação emocional diante dos conflitos que presencia e pensando apenas nas imagens a serem produzidas. Por outro lado, temos em Joe que se comporta como um viciado em adrenalina, atraído para a cobertura de conflitos por gostar da tensão de estar em meio à ação, algo evidenciado quando ele vê clarões de disparos no horizonte e propõe aos colegas um desvio na viagem para cobrirem o que está acontecendo.

Em meio a isso está Jessie, que deseja se tornar uma fotojornalista como Lee, mas está pela primeira pisando em uma área de conflito. Lee claramente vê a si mesma mais jovem na ingenuidade e empolgação de Jessie e tenta preparar a garota para a realidade dura que ela encontrará. Há um misto de rejeição e proteção no modo como Lee trata Jessie. Ela não quer a garota ali porque teme que Jessie perderá sua humanidade assim como ela e tenta protegê-la disso ao mesmo tempo em que se afeiçoa a garota e recupera parte de sua própria humanidade ao se abrir para ela e ocupar uma posição de mentora. É essa recuperação da humanidade que eventualmente tira Lee de sua postura de olhar passivo ao tomar uma ação perto do final.

Isso, porém, não significa que o filme também não fale sobre as divisões na sociedade estadunidense. É algo menos proeminente que o material de divulgação dava a entender, mas não deixa de ter seu impacto. A narrativa nunca é explícita quanto aos motivos para o conflito, dando a entender que tudo começou por conta da postura autoritária e discurso reacionário do presidente interpretado por Nick Offerman, que estaria em seu terceiro mandato, tanto que Sammy o compara a figuras como Gaddafi ou Ceaucescu.

Ilustrando a divisão interna dos Estados Unidos há a informação que mesmo o combate contra uma figura como o presidente foi capaz de unir todo o país, que se dividiu em diferentes facções, como as Forças do Oeste (cuja bandeira com duas estrelas indica que seja uma coalizão de dois estados como Califórnia e Texas) ou os secessionistas da Flórida. O senso de divisão de uma retórica sectária está presente em algumas das cenas mais brutais do filme. A mais impactante delas é o momento em que os personagens encontram soldados desovando corpos em uma vala e se tornam alvo deles. Joe tenta argumentar dizendo “somos americanos” e o soldado devolve com a pergunta “que tipo de americanos?”, demostrando como o militar tem uma visão muito estreita do que seria “ser americano” que é comprovada pelo fato dele atirar sem dó em qualquer um deles que não tenha nascido no país.

Em geral a violência mostrada no filme não é feita para ser empolgante ou para causar adrenalina, ela é usada para causar desconforto, para ser fonte de temor ou de sofrimento. Não há glória, satisfação ou catarse a ser encontrada na violência representada aqui, apenas um senso de desalento, de morte sem sentido ou de perda de humanidade.

A separação presente entre as diferentes populações não existe aqui apenas por conta do discurso de intolerância e preconceito, o próprio individualismo da população provoca essa divisão. Isso é visto tanto no segmento em que eles chegam a uma cidade interiorana perfeitamente preservada e alheia à guerra que se mantem assim por conta da brutal milícia que vigia a cidade. Ou seja, ninguém se importa com a violência ao redor, com a situação do país ou em defender qualquer ideologia desde que se sintam seguros.

Algo semelhante acontece quando eles esbarram em um duelo de snipers na estrada. Ao ser perguntado sobre o que está acontecendo, o soldado perto do carro deles apenas responde “tem alguém naquela casa atirando na gente”. Atônito Joe questiona se eles não sabem quem é, de que lado o oponente está ou o que há na casa. O atirador simplesmente ignora as perguntas e reitera que está tentando matar alguém que quer matá-lo. A cena mostra como a guerra reduz os seres humanos aos instintos mais primitivos, onde a sobrevivência individual é tudo que importa e ninguém quer saber quem é o outro ou se ele é realmente alguém que pensa diferente e seria capaz de me ameaçar, nada disso importa, o que importa é o sentimento individual de segurança.

Como o filme é propositalmente vago sobre o contexto da guerra, com muito sendo inferido e pouco sendo falado explicitamente, esses elementos ficam abertos a interpretação, propiciando mais possibilidades de leitura das que eu trouxe aqui. Claro, esses elementos continuam sendo secundários frente à discussão sobre jornalismo e isso talvez desaponte algumas pessoas que entrem esperando algo mais focado na questão da guerra civil em si já que a divulgação foca mais nisso. Ainda assim, a narrativa traz elementos suficientes para nos fazer pensar sobre essas divisões e de onde elas vêm, mesmo dias depois dos créditos finais terem subido.

Guerra Civil apresenta um envolvente e provocador retrato sobre guerra, a produção de imagens a seu respeito e os vários graus desumanização engendradas pelo conflito.

 

Nota: 9/10


Trailer

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