A trama é protagonizada por Eva (Grazi Massafera), prestes a ter seu primeiro filho com o marido, Vicente (Reynaldo Gianecchini), que tem duas filhas de um casamento anterior. Cuidando do recém nascido e também das duas enteadas, Eva começa a se sentir sozinha em casa e o cansaço de fazer tudo sozinha começa a afetá-la. Ao mesmo tempo seu bebê e as duas enteadas começam a exibir machucados desconhecidos, que Eva não sabe como explicar e Vicente começa a desconfiar dela.
A história explora como o cuidado do lar e dos filhos é todo colocado como responsabilidade da mulher e como cabe ao marido “ajudar” de tempos em tempos ao invés de ser um parceiro que divide as tarefas. Vicente chega a falar na frente da família que a esposa “não trabalha” como se cuidar de uma casa, um recém nascido e duas meninas não fosse algo trabalhoso e que não demandasse esforço e atenção.
É curioso como a câmera de Belmonte muitas vezes filma Eva entre frestas, observando de canto de portas, como se ela fosse uma intrusa ou uma empregada da própria casa, ausente de si mesma e existindo para cuidar daquele local. Os constantes closes fechados no rosto da criam uma sensação de um ambiente opressivo, com demandas sempre se impondo sem dar respiro para Eva. Isso é ampliado pelo som que traz os constantes choros do recém-nascido, sempre nos mantendo alertas a essas demandas.
A existência de dona de casa é filmada como um filme de horror por Belmonte, alguém deixada de lado e subestimada pela própria família. Isso fica evidente na cena em que Vicente prepara café da manhã com as filhas quando Eva está fora de casa, contrastando com um momento do início em que Eva faz tudo sozinha sem que ninguém a ajude. É como se Vicente e as filhas vissem Eva como uma empregada, alguém cuja obrigação é atender sozinha as necessidades da família.
A tensão também é construída com habilidade, muitas vezes recorrendo a desequilíbrios entre a informação do público e os personagens. Em uma cena, Eva invade a casa de Vicente para plantar câmeras e enquanto ela faz isso, a câmera corta para ele chegando em casa com as filhas. Vicente para diante da porta para conversar com as meninas enquanto a câmera faz um movimento vertical para mostrar Eva através da janela do segundo andar, alheia à chegada do marido. A tensão se dá justamente porque nós temos ciência de uma ameaça que se aproxima para frustrar os planos da protagonista enquanto ela segue alheia a esse perigo.
Grazi é eficiente em construir o desespero silencioso de Eva, alguém soterrada de demandas, sempre menosprezada e julgada, constantemente tratada como culpada quando algo da errado, quase que deliberadamente empurrada à loucura pelas estruturas machistas ao seu redor que sempre responsabilizam a mãe por qualquer problema. Se todo o arco da personagem parece envolver uma discussão sobre como o machismo destrói o psicológico da mulher, tudo cai por terra quando o filme chega em seu clímax.
É impossível falar dos problemas que a reviravolta final traz sem citá-la diretamente então aviso que os parágrafos a seguir contem SPOILERS. A descoberta do real culpado pelos ferimentos misteriosos no bebê de Eva e em suas enteadas desloca toda a temática do filme de questões de machismo para se tornar uma narrativa sobre crianças psicopatas, sendo que nada disso foi devidamente construído. Sim, temos algumas pistas, como a morte misteriosa da primeira filha de Vicente da qual ele se recusa a falar, mas é muito pouco para uma guinada tão radical em relação às ideias que o filme trabalhava.
A revelação faz toda a conversa sobre machismo não ir para lugar nenhum ou fazer muita diferença na narrativa, já que a ruína de Eva não vem do machismo ou do lugar ao qual as mulheres são relegadas pela sociedade e sim por uma psicopata infantil aleatória. A reviravolta poderia funcionar se o filme construísse a relação de Vicente com a garota, mostrando que ele sabia das tendências da filha, mas se manteve em silêncio por conta de alguma ideia deturpada de amor parental para proteger a filha e resolvesse armar tudo para Eva, aproveitando que nosso machismo estrutural tornaria fácil acreditar na narrativa construída por ele. Como o desfecho tem pouca relação com o que foi desenvolvido até então, a discussão sobre machismo acaba soando mais como um dispositivo narrativo para despistar o espectador em relação ao que realmente acontecia do que uma temática que o filme tem interesse em discutir.
Eu queria ter gostado de Uma
Família Feliz devido ao modo como a direção de Belmonte constrói a
atmosfera de suspense e da performance da protagonista, mas o desfecho sabota
toda a construção feita até então, fazendo toda a discussão sobre machismo e patriarcado
não ir a lugar nenhum, soando como uma oportunidade desperdiçada.
Nota: 4/10
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