terça-feira, 18 de junho de 2024

Crítica – O Estranho

 

Análise Crítica – O Estranho

Review – O Estranho
As primeiras imagens de O Estranho se situam séculos atrás, mostrando a região de Guarulhos numa época anterior à ocupação urbana de hoje. As imagens como a natureza foi severamente modificada e como uma população indígena que existia ali provavelmente foi removida ou não existe mais. Essa tentativa de trazer o passado para o presente e pensar no que foi feito com os espaços e populações nativas é o cerne do filme. 

A trama gira em torno de Alê (Larissa Siqueira), uma mulher que trabalha no aeroporto de Guarulhos e lida com uma dupla ausência. De um lado trabalhar naquele local a faz pensar na história passada de sua família indígena que foi removida da região e de outro da filha, que desapareceu décadas atrás. Outra ausência iminente é a da namorada, Silvia (Patricia Saravy), que está para se mudar para um local mais longe, também se afastando de suas origens e do terreiro do qual faz parte. 

Apesar de ser uma narrativa sobre ausências, sobre tentar resgatar o que falta, há no cotidiano de Alê bastante afeto, seja na relação com Silvia, seja no cotidiano com os colegas a exemplo da cena em que ela dança com dois deles no meio do terminal. Esse afeto também é direcionado para a relação que Alê estabelece com o espaço, constantemente caminhando pelas matas ao redor do aeroporto, explorando vestígios de uma ocupação anterior e buscando uma conexão com o próprio passado. Esses vestígios, como pedaços de cerâmica ou pontas de flecha, revelam como o passado resiste à destruição da memória causada pela ocupação contemporânea. 

Resistência também parece ser a razão do filme inserir cenas de rituais indígenas e afro-brasileiros de populações que estão nos arredores daquele espaço, um lembrete de que apesar de tudo, de todo o apagamento e tentativa de afastá-los de suas origens, aquelas populações continuam conectadas a suas identidades. São imagens que não necessariamente tem uma conexão direta com a narrativa de Alê, mas existem como elo temático para as reflexões do filme sobre Guarulhos. 

Na verdade, o filme insere vários interlúdios que misturam diferentes linguagens e formatos que causam certo estranhamento, o que parece ser proposital, como que para deixar o público imerso em sentir esses vários tempos, espaços e perspectivas simultâneos. Em dado momento, por exemplo, o filme insere entrevistas documentais reais com pessoas que habitam reservas indígenas da região. Em outro, vemos um documentário ficcional dentro da trama de Alê, com ela sendo entrevistada por uma estudante para contar a história da região. É como se o filme nos lembrasse da necessidade de fabulação na construção do relato histórico, em como a memória não é apenas construída sobre dados objetivos da realidade, mas também se faz sobre um componente de imaginação. 

Sim, a narrativa mais frouxa, mais fragmentada da protagonista pode afastar parte do público e às vezes eu realmente me perguntei, considerando os múltiplos filmes que estão contidos em O Estranho, se ela era realmente necessária, considerando que o interesse da dupla de diretores Flora Dias e Juruna Mallon é mais no espaço de Guarulhos em si do que em Alê ou das pessoas que gravitam em torno dela. A personagem existe meramente como um meio do filme introduzir o espectador às ideias que a narrativa tenta desenvolver e me pergunto se talvez não seria melhor, se o filme fosse um documentário pleno sobre a região de Guarulhos, já que essa mescla de linguagens e formatos, embora proposital em sua natureza fragmentária que remete a um esforço de reconstruir histórias e memórias a partir de fragmentos, nunca forma um todo coeso como fez recente A Flor do Buriti, também um híbrido entre documentário e ficção que trabalhava questões relativas à populações indígenas. 

Claro, nos conectamos a Alê pela carga emocional que Larissa Siqueira traz à personagem e o modo como imagem e sons são utilizados para nos transmitir seus estados de ânimo. Quando Silvia informa a ela sobre sua mudança, as personagens são filmadas em um plano aberto, num terreno vazio, com as personagens nas beiras do enquadramento, uma escolha na qual o distanciamento físico entre elas naquele momento evoca o distanciamento afetivo que a notícia causa em Alê. Falando em escolhas, o filme constrói um senso de naturalismo para o cotidiano de Alê, prezando pelo uso de som direto que deixa os ruídos de maquinário ou dos constantes voos de aviões invadirem a cena. A fotografia parece se construir sob um uso de luz natural que não tenta dar nenhuma ambientação específica ao aeroporto ou à mata, mas que pela simples oposição entre os espaços cinzentos do aeroporto e o verde que inunda os espaços de mata cria um claro contraste entre eles. 

O Estranho é eficiente em fazer ressoar no espectador suas provocações sobre a ocupação do espaço de Guarulhos e os custos sociais, ambientais e históricos de uma determinada visão de progresso que tenta apagar a presença dos povos originários. Por outro lado, os dispositivos e formatos que tenta conciliar deem a sensação de reflexões muito difusas.

 

Nota: 7/10


Trailer

Nenhum comentário: