quarta-feira, 19 de junho de 2024

Rapsódias Revisitadas – Rio, Zona Norte

 

Crítica - Rio, Zona Norte

Rapsódias Revisitadas – Rio, Zona Norte
Dirigido por Nelson Pereira dos Santos, responsável por obras seminais do cinema brasileiro como Vidas Secas (1963), Rio, Zona Norte foi lançado em 1957. É uma narrativa sobre a vida na periferia do Rio de Janeiro, do samba que dela emerge e como esse samba é apropriado pela elite carioca, deixando à míngua os músicos do morro. 

O protagonista é Espírito da Luz (Grande Otelo), um sambista da periferia carioca que cai de um trem lotado saindo da Central do Brasil e machuca a cabeça. Enquanto ele agoniza, voltamos aos seus últimos meses, quando ele lutava para gravar seus sambas, mas tem suas músicas roubadas pelo parceiro Maurício (Jece Valadão). Ele também enfrenta problemas com o filho Lourival (Haroldo de Oliveira), que se envolve com uma gangue de criminosos.

A trama alterna entre o presente de Espírito sendo encontrado às margens da linha do trem e o passado que mostra como ele chegou naquela situação. É uma estrutura narrativa pouco usual para a época e ajuda a nos deixar interessados pelo destino do músico, criando suspense tanto em relação a se ele irá sobreviver no presente quanto o que causou seu infortúnio no passado.

Trazendo uma inspiração do neorrealismo italiano que já estava presente em seu filme anterior, Rio 40 Graus (1955), Nelson Pereira dos Santos filma o cotidiano de Espírito da Luz com uma estética bastante naturalista, como se estivéssemos de fato acompanhando o cotidiano de uma pessoa real tentando sobreviver no mundo da música. O arco de Espírito mostra como produtores sem escrúpulos passavam a perna em músicos talentosos, mas sem conhecimento de como o negócio funcionava. O Maurício vivido por Jece Valadão se finge de amigo do sambista, agindo como se contribuísse com sua composição ao sugerir uma palavra da letra apenas para conseguir inserir seu nome nos créditos e depois remover o de Espírito na hora de vender a canção, fazendo-o assinar um documento em que diz não ter direitos sobre a composição.

É uma narrativa que ilustra como o samba nascia nos morros, como refletia os prazeres e agruras daquela população. Ao mesmo tempo, revela como a saída do samba dos morros para os espaços de classe média ou de elite se deu através da exploração desses músicos de origem humilde, basicamente lembrando como o samba, um ritmo criado predominantemente por populações negras e periféricas, foi, de certa forma, “roubado” pelos brancos e como muitos compositores importantes tiveram seus nomes apagados da história. Por mais que o filme narre eventos envolvendo personagens ficcionais, sua trama reflete as histórias de muitos compositores de samba do período.

A aproximação do neorrealismo italiano de diretores como Roberto Rossellini ou Vittorio de Sica na estética e a trama que construía um drama urbano política e socialmente engajado funcionava como uma antípoda às chanchadas, repletas de comédia e segmentos musicais (embora também dotadas de observações críticas sobre questões de classe no Brasil), que eram populares na produção brasileira da época. Não a toa que os trabalhos de Nelson Pereira dos Santos no período, Rio 40 Graus e Rio, Zona Norte, são considerados como tendo inspirado realizadores do Cinema Novo.

Também nas antípodas das comédias populares está a atuação de Grande Otelo como Espírito da Luz. Famoso por seus papéis cômicos em filmes como Carnaval Atlântida (1952), Otelo tem aqui a chance de mostrar todo seu alcance dramático. Espírito é um homem cheio de esperança para mudar sua situação, colocando sua dor e sua alegria através da música e confiando que o talento será o suficiente para ter suas canções gravadas por grandes músicos. Esses sentimentos são visíveis na cena em que ele oferece uma música a Ângela Maria (interpretando a si mesma) e durante o canto vemos Otelo, filmado em close durante todo o segmento, colocar para fora toda a energia, afeto e dor do sambista na interpretação da canção no que deve ser uma das cenas mais belas do cinema brasileiro. Que a história de Espírito termine de maneira triste apesar de seus momentos sublimes só sublinha a tragédia de sua trajetória, na qual sua integridade e despedaçada por um meio que só o vê como alguém a ser explorado.

Com um retrato envolvente a respeito do universo do samba carioca e de seu movimento para fora dos morros, bem como a construção do trama trágico de seu protagonista, elevado pela interpretação de Grande Otelo, Rio, Zona Norte mostra porque é uma produção tão marcante para o cinema brasileiro.

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