terça-feira, 16 de julho de 2024

Crítica – Assassino Por Acaso

 

Análise Crítica – Assassino Por Acaso

Review – Assassino Por Acaso
Não esperava muita coisa de Assassino Por Acaso, já que o material de divulgação não dava a impressão do quão esquisito era o filme. Ainda bem que resolvi dar uma chance a ele e conferir essa ponderação bem humorada que o diretor Richard Linklater faz a respeito de nossa relação com a ficção e nosso senso de identidade.

A narrativa é levemente baseada em uma história real. Gary Johnson (Glen Powell) é um tímido professor de filosofia que ocasionalmente trabalha disfarçado com a polícia de Nova Orleans. Ele lida com operações de vigilância, prendendo pessoas que buscam contratar assassinos profissionais. Quando o policial que costuma “interpretar” o falso assassino nas operações é suspenso, Gary acaba assumindo a função e revela ter naturalidade para fingir ser outra pessoa. É aí que ele conhece Madison (Adria Arjona), uma mulher disposta a contratar alguém para matar seu marido abusivo. Entendendo as razões dela, Gary a convence a desistir e acaba se apaixonando por Madison. O problema é que ela continua acreditando que ele é um matador de aluguel e então tenta se comportar como um.

A trama pondera sobre as expectativas que as pessoas têm com a vida, usando a figura do matador de aluguel como metáfora para o modo como nos relacionamos com a ficção. Um matador de aluguel é algo que não existe no mundo real, é uma criação dos filmes e outros produtos ficcionais. Essa ficção é, por sua vez, uma maneira de externarmos uma série de sentimentos e desejos, desde a vontade de fazer nossos problemas desaparecerem ao desejo de sermos destemidos ou de encararmos o perigo de frente. É desses desejos que partem a maioria dos suspeitos com quem Greg interage, modificando sua persona de assassino para se adequar às expectativas de cada cliente. É como se esses sujeitos tentassem manifestar de volta no mundo real os sentimentos que costumeiramente relegamos à ficção.

Nesse sentido, o trabalho de Greg o faz perceber que a maneira como nos apresentamos ao mundo é, em si, uma ficção, já que criamos diferentes versões de nós mesmo para diferentes situações, como ele e seus disfarces. São noções que remetem a ideias do sociólogo Erving Goffman no seminal A Construção do Eu na Vida Cotidiana, no qual o cientista social pondera sobre como construímos diferentes performances de si em diferentes situações sociais. Aquilo que apresentamos ao mundo como o “eu” não seria algo estático, mas uma performance mutável e construída por nós a partir daquilo que achamos que somos ou que queremos ser. Uma ficção que projetamos no mundo e, de certa forma, tornamos real a partir de nossas ações.

Todo esse existencialismo e psicologia social é embalado com uma boa dose de humor, construído em cima tanto do absurdo de certas situações envolvendo os “clientes” de Gary, lembrando como a realidade pode ser mais bizarra que a ficção, como também na própria dinâmica entre Gary e Madison, que poderia pertencer a uma comédia romântica açucarada se não fosse todo o caos e maluquice ao redor. Já na primeira cena que os dois conversam a trama estabelece a química entre eles com diálogos espirituosos que poderiam ser do primeiro encontro em uma comédia romântica típica e não uma em que os personagens se conhecem para arranjar um assassinato.

É um romance todo errado e, por isso, divertido de acompanhar, já que mesmo quando as coisas se tornam sérias e dão uma guinada para elementos sombrios conforme mortes de verdade começam a acontecer. Seria fácil que o filme se perdesse nessas variações de tom, mas a condução de Linklater não perde de vista que sua narrativa é, em primeiro lugar, sobre a mudança de Gary e como sua experiência sendo um matador de mentira o ajuda a perceber que ele não precisa ser esse professor retraído o resto da vida e de que é ele quem constrói a própria realidade sobre si. Claro, essa reconstrução do “eu” não é um processo simples e as vezes certas rupturas podem ser violentas, como ilustrado pelo insano clímax em que ele acaba se tornando um assassino, mas que o deixam perto de ser quem deseja. A cena final acompanhando Gary e Madison no futuro é igualmente doce e sombria, acompanhando a felicidade de um casal que foi construída da maneira mais caótica e errada possível.

Assim, Assassino Por Acaso é uma divertida análise do processo de retroalimentação entre ficção e realidade, lembrando da natureza performática de nossa conduta e de como isso constrói a realidade a nossa volta.

 

Nota: 8/10


Trailer

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