segunda-feira, 15 de julho de 2024

Crítica – A Filha do Pescador

 

Análise Crítica – A Filha do Pescador

Review – A Filha do Pescador
Em uma das primeiras cenas de A Filha do Pescador vemos um homem mergulhando no mar tentando pescar um mero. O mero é um peixe que está em extinção e que em situações de escassez pode trocar de sexo para continuar a se reproduzir e garantir a sobrevivência da espécie e de si. A ideia da transição como parte da natureza é central para o filme, cujo título original, La Estrategia del Mero, já faz alusão ao peixe e seu mecanismo de sobrevivência.

A trama se passa na década de noventa em uma pequena ilha do Caribe colombiano. Samuel (Roamir Pineda) é um pescador em apneia que vive uma existência solitária e amargurada, tendo sido abandonado pela esposa e filho anos atrás. As coisas mudam quando um amigo pescador lhe informa do retorno do filho à cidade, que agora é uma mulher trans e atende pelo nome de Priscilla (Nathalia Rincon). Ela está com problemas e precisa se esconder na pequena ilha por algum tempo, mas o pai não aceita o modo de vida da filha, tratando-a com preconceito.

De certa forma é uma trama de superação de preconceitos similar ao que já vimos antes. O pai rejeita Priscilla, agindo como se ela fosse um ser aberrante e abjeto, mas aos poucos passa a se aproximar dela, entendendo mais sua transição e também porque ela e a mãe partiram anos atrás. Apesar de uma trama típica e relativamente previsível, a produção conquista pela sensibilidade com a qual conduz a jornada de Priscilla, avançando com um ritmo bem deliberado e introspectivo. Envolve também por nos apresentar a uma ambientação que esse tipo de produção sobre pessoas trans não costuma nos colocar.

Situada em uma época na qual o debate sobre pessoas trans era ainda mais conservador e cheio de tabus que hoje, ainda mais numa localidade remota habitada por pessoas rústicas, a narrativa evita vilanizar plenamente Samuel. Seu preconceito é fruto de um tempo e lugar no qual não havia muita informação e todo o discurso que circulava ao redor de pessoas trans as tratava como indivíduos conectados ao crime, a prostituição e a AIDS. A jornada de Priscilla reflete isso, mostrando como ela foi marginalizada, recorrendo à prostituição por não ter outro meio de sobreviver, tratada como criminosa apenas por ser quem é e obrigada a fugir depois que uma abordagem policial dá errado.

A hipocrisia daquela comunidade se desnuda quando um dos amigos de Samuel descobre o motivo dela ter fugido e chantageia Priscilla em troca de sexo para ficar em silêncio, embora continue a tratá-la com preconceito publicamente, numa oposição ao desejo que manifesta em relação à Priscilla privadamente. É uma instância que mostra como a personagem é submetida a uma dupla violência, sendo explorada sexualmente e alvo do ódio da mesma pessoa.

Depois de se ferir e passar a depender dos cuidados da filha, Samuel é forçado a passar mais tempo com Priscilla e eventualmente consegue estabelecer um diálogo com ela. Os dois se confrontam com o passado e os motivos de Priscilla e a mãe terem partido ao mesmo tempo em que ela revela os recortes de jornal que guardou sobre os feitos do pai ao longo dos anos, mostrando que nunca deixou de se importar.

A presença da filha aos poucos modifica o espaço de Samuel, com a humilde cabana de tábuas cruas aos poucos ganhando elementos de decoração, como os já citados recortes de jornal que são colocados na parede, servindo como uma metáfora visual de como Samuel se abriu para compartilhar a vida com a filha e como ambos foram se transformando com o desenrolar daquela relação. A aceitação se materializa no momento em que Samuel defende Priscilla dos ataques do amigo que a chantageou, mostrando que o pescador a aceitou plenamente, sequer se importando com os erros ou problemas de seu passado.

Há um contraste claro entre as tábuas cinzentas do casebre o azul vívido do mar, um espaço fotografado como mais pulsante, mais cheio de vida. Não é a toa, portanto, que é o mar que sela a comunhão entre pai e filha ao final, com um mergulho que mistura passado e presente, no qual a montagem mostra o menino de outrora dar lugar a mulher do presente, como um mero fazendo uma transição para sobreviver em um ambiente hostil. Se o mundo humano é repleto de ódio, o desfecho nos lembra como a natureza não se importa com nada disso e que todo esse discurso de intolerância não emerge naturalmente, mas é socialmente construído.

 

Nota: 7/10


Trailer

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