terça-feira, 9 de julho de 2024

Rapsódias Revisitadas – Holocausto Brasileiro

 

Crítica – Holocausto Brasileiro

Review – Holocausto Brasileiro
Baseado no livro de mesmo nome de Daniela Arbex, o documentário Holocausto Brasileiro foi lançado em 2016 e narra a chocante história real do hospital psiquiátrico Colônia, localizado em Barbacena, interior de Minas Gerais. Em seus oitenta anos de funcionamento o hospital abrigou milhares de pacientes, alguns que sequer tinham problemas psiquiátricos, mas as condições desumanas do local causaram a morte de mais de sessenta mil pessoas.

Estruturado ao redor de entrevistas e imagens de arquivo, o documentário conta a história do hospital desde sua origem no início do século XX, quando foi criado como um centro terapêutico para a elite carioca, e depois quando se tornou um hospital psiquiátrico pertencente ao estado de Minas Gerais. A partir daí vemos como o local se tornou um espaço de exclusão e tormento no qual as autoridades não apenas aprisionavam pessoas com transtornos mentais severos, mas também qualquer um que não tivesse para onde ir, como crianças órfãs e pessoas em situação de rua. Todos os que estavam no hospital, independente do diagnóstico, eram tratados como pacientes psiquiátricos, recebendo uma medicação pesada e até tratamentos mais agressivos, como eletrochoques.

As imagens de arquivo, retiradas de uma reportagem da década de 60 da revista O Cruzeiro e também do filme Em Nome da Razão (1979), de Helvécio Ratton, evidenciam as condições precárias dos internos, com corpos desnutridos, sem higiene (por vezes sem roupas), tomados por moscas e extremamente carentes. São imagens que remetem a prisioneiros em campos de concentração nazistas e dão a medida do genocídio e desumanidade que aconteciam naquele local.

As associações com o Holocausto são sentidas também nas cenas em que o filme leva sobreviventes do hospital, bem como parte da equipe de O Cruzeiro e de Em Nome da Razão para visitarem as instalações abandonadas do hospital. A existência dessas pessoas, ainda que algumas delas claramente fragilizadas pelos anos do local, em meio aos escombros do lugar que quase os destruiu são imagens poderosas por si só, um triunfo da humanidade diante do extermínio. Elas remetem às imagens dos sobreviventes do Holocausto caminhando pelas ruínas dos campos de concentração no seminal documentário Shoah (1985), de Claude Lanzmann.

A investigação empreendida pelo documentário evita uma denúncia com maniqueísmos fáceis, compreendendo que não há uma instância única a ser culpada, analisando que algo tão grave só poderia ter acontecido com a anuência de vários setores. Desde a própria sociedade, que parecia confortável em mandar seus indesejados, desde sem-teto a amantes grávidas, para uma exclusão cruel; passando pela medicina, que na época endossa cuidados desumanos e pouco sanitários para transtornos mentais, além do próprio Estado que entulhava o local de pacientes sem dar as mínimas condições para que os funcionários do local cuidassem dignamente dos internos.

Vários ex-funcionários chegam a mencionar que havia um médico ou enfermeiro para cada quatrocentos pacientes, além de um número limitado de suprimentos médicos (como seringas) ou itens básicos tipo camas ou colchões, o que contribuía para as condições pouco sanitárias do local, facilitando a difusão de doenças ou infecções. Ao mesmo tempo, os documentos e entrevistas mostram que embora tivessem pessoas tentando fazer as coisas funcionar dignamente, outros usavam a situação e o fato dos internos serem pessoas sem vínculo ou abandonadas por suas famílias para ganhos pessoais. Alguns, por exemplo, chegavam a explorar a força de trabalho dos internos em um regime próximo à escravidão considerando a situação de confinamento deles e o fato de não serem remunerados. Outros lucravam vendendo os cadáveres dos muitos mortos para faculdades de medicina ou centros de pesquisa, basicamente transformando em negócio o falecimento de pacientes e estimulando situações que levassem a mais óbitos.

Se o recente filme de ficção sobre o caso, Ninguém Sai Vivo Daqui faz um retrato simplório dos problemas que aconteciam no hospital e todo o contexto que permitiu essa tragédia, o documentário Holocausto Brasileiro é um relato abrangente e impactante de uma das histórias mais desumanas do nosso país.


Trailer


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