Ele foi, provavelmente, o filme que iniciou o meu masoquismo audiovisual e sem ele provavelmente nunca teria pensado em criar essa coluna. Talvez por conta disso eu tenha esperado para falar sobre ele em uma ocasião especial. Essa ocasião acabou sendo minha participação no Festival Cinderela Baiana de Cinema que ocorreu de 16 a 18 de agosto aqui em Salvador. Fui convidado pela organização do festival a falar sobre o filme, então tive que revê-lo e aproveitei para fazer por escrito minhas considerações. O que vem a seguir é menos uma análise pormenorizada do filme e mais uma tentativa de explicar como ele ganhou seu status lendário de ruindade e porque ele continua sendo discutido mesmo sendo tão ruim.
A Lenda da Cinderela Baiana
Meu primeiro contato com Cinderela Baiana foi na época de lançamento do filme em 1998. Soube da existência dele através da reportagem de um telejornal local que falou do fracasso do filme e mostrou imagens de uma sessão com apenas duas ou três pessoas. Eu nunca tinha visto um filme ser falado como um fracasso tão grande e isso despertou minha curiosidade. Tempos depois cheguei a ver a fita VHS em locadoras, mas nunca tive disposição para usar meus parcos recursos de estudante para alugá-la.
Eu só fui realmente assistir quando estava na faculdade e tive acesso a internet banda larga, descobrindo o filme completo na internet. Assistir esse filme foi uma experiência diferente. Eu já tinha visto filmes ruins antes, já tinha dado risada de filmes ruins antes, mas Cinderela Baiana era um animal diferente. Era tão ruim, tão equivocado, tão sem sentido que funcionava como uma comédia de absurdo.
Certamente não era essa a intenção do diretor Conrado Sanchez, cujas experiências anteriores na cadeira de direção compreendiam principalmente pornochanchadas como A Menina e o Estuprador, Como Afogar o Ganso e A Menina e o Cavalo, títulos que realmente gabaritam alguém a conduzir um filme biográfico de uma dançarina de pagode pensado como uma aventura para toda a família e que evoca contos de fadas. A intenção era ser uma espécie de autoficção da trajetória de Carla Perez, tanto que a personagem que ela interpreta retem seu nome, seu par romântico é interpretado por seu então namorado Alexandre Pires. Dotando o filme de, talvez, algum valor histórico por registrar esse momento no tempo e também por ser o primeiro longa metragem da carreira de atores como Lázaro Ramos ou Wagner Moura.
Caos tropical
A questão é que o filme é tão distante de qualquer convenção narrativa, estética, de montagem ou de roteiro, tão alheio a qualquer compreensão básica da psique humana que dá a impressão de algo criado por alguém que viveu numa caverna, isolado de qualquer contato humano. O resultado é uma narrativa tão distante de qualquer senso básico de relações de causa e consequência entre uma cena e outra que nos faz questionar nossa própria inteligência. Nos perguntamos: “será que essa narrativa é realmente tão mal costurada, em um nível tão imponderável de incompetência ou será que eu estou deixado escapar algo? Será que eu sou burro?”
Talvez seja algo fruto de uma cognição tão avançada que nossas débeis mentes não conseguem acompanhar, talvez ele opere em um nível de simbolismo surrealista tão complexo que apenas alguém com a cognição de um Salvador Dalí ou Luis Buñuel consiga explicar o que se apresenta na tela diante de nós. A cena final talvez seja o melhor exemplo disso. Saltando de um carro esportivo com uma fantasia de odalisca, Carla vê um grupo de crianças trabalhando à beira da estrada. Ela toma a gaiola de passarinhos que está na mão de uma das crianças e inicia um discurso apaixonado contra o trabalho infantil que culmina na libertação dos passarinhos da gaiola. O discurso mal tem tempo de encerrar antes que comecemos a ouvir o riff inicial de Segura o Tchan e todos passem a dançar no meio da estrada ao som de uma letra que fala de maneira pouco sutil sobre sexo em múltiplas posições e a gravidez que resulta disso. Mais pessoas se juntam à dança, um helicóptero desce próximo às pessoas e policiais saltam dele, se juntando à dança. O que é isso? Qual a relação entre esses vários elementos imagéticos, de figurino, de discurso, de música e dança? Como uma esfinge de tempos imemoriais Cinderela Baiana nos desafia a decifrá-la. Como o abismo da parábola de Friedrich Nietszche, Cinderela Baiana nos encara de volta e nos confronta com nosso próprio vazio.
Porque nos divertimos com filmes ruins?
Talvez seja isso que tenha permitido um filme tão precário a sobreviver na memória coletiva por tanto tempo, mas essa não seria a única explicação. Em seu ensaio Notas Sobre o Camp a pesquisadora Susan Sontag pondera sobre o que atrai as pessoas a gostarem de filmes ruins. Não no sentido de entender porque algumas pessoas acham bons filmes considerados ruins, mas porque comunidades cinéfilas se interessam e se entretêm com filmes que eles próprios consideram muito ruins.
Ela entende que nosso senso de apreciação artística, de gostarmos de algo, depende, entre outras coisas, de identificarmos em uma obra a existência de uma coesão estilística. Ou seja, de percebermos consonância e diálogo entre os muitos elementos visuais, sonoros, temáticos ou emocionais que compõem a obra. O prazer de assistir filmes ruins vem justamente de identificarmos uma coesão estilística na obra, especificamente em como todos os elementos visuais e sonoros operam em plena consonância de um grau extremo de incompetência.
É por isso, também, que filmes feitos propositalmente para serem ruins, tipo Sharknado, nunca tem o mesmo impacto ou a mesma graça que algo como Cinderela Baiana ou The Room. Em filmes como os da Carla Perez identificamos a sinceridade dos envolvidos, o desejo de tratar como um drama sério um material completamente pedestre e talvez seja essa seriedade diante do absurdo que torna tudo tão engraçado.
Esse é outro possível motivo para que Cinderela Baiana continue despertando o nosso interesse. É um lembrete de que o cinema, como qualquer arte, não pode ser resumido à técnica. A arte que fica conosco não é necessariamente aquela que tem a técnica mais perfeita, mas a que nos faz sentir algo, nesse caso o riso. Ano após ano assisto inúmeros filmes hollywoodianos de alto orçamento, com o que há de mais moderno no aparato técnico e executando a produção segundo todas as convenções esperadas e ainda assim começo a esquecê-los assim que deixo a sala de cinema. Cinderela Baiana permanece na minha memória porque mesmo com suas muitíssimas falhas é capaz de me fazer sentir algo enquanto outros filmes sem grandes falhas não me despertam reação alguma.
Nesse sentido, a ideia de que mesmo uma obra tão falha possa ser
memorável é um convite e um estímulo para que nós continuemos a pensar e a
fazer cinema mesmo em um contexto precário como o brasileiro, onde os recursos
são escassos e temos que nos virar com aquilo que temos à mão. Que nosso
desejo, que nossa vontade sincera de nos conectarmos a outras pessoas através
do cinema tem possibilidade de alcançar audiências, de comunicar algo, de fazer
sentir algo, mesmo que não tenhamos os melhores recursos, mesmo que nossa
execução não seja perfeita. Cinderela
Baiana permanece porque carrega consigo essa capacidade de inspirar a
arriscar, a fazer um filme mesmo com poucos recursos, mesmo que sejamos
inexperientes ou não saibamos exatamente como fazer. Afinal, não importa o
quanto erremos ao fazer um filme, certamente ele não vai ser pior que Cinderela Baiana.
Trailer
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