segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Rapsódias Revisitadas – Assassinato em Gosford Park

 

Crítica – Assassinato em Gosford Park

Review – Assassinato em Gosford Park
Apesar do título em português evocar um suspense investigativo, Assassinato em Gosford Park é um drama mais interessado no que o assassinato no centro da trama movimenta entre os diferentes personagens que habitam a luxuosa mansão britânica na qual a narrativa se passa do que no crime em si. É um filme sobre questões de classe social e como a criadagem é tratada de forma invisível, com os funcionários usando essa invisibilidade a seu favor.

A narrativa se passa em 1932 e acompanha um final de semana na propriedade de Gosford Park, chefiada pelo truculento William McCordle (Michael Gambon). A propriedade abriga no final de semana membros proeminentes da sociedade britânica, como lady Constance Trentham (Maggie Smith), a filha de McCordle, Sylvia (Kristin Scott Thomas), Raymond Stockbridge (Charles Dance), além de convidados estrangeiros como o produtor de cinema Morris Weissman (Bob Balaban). Esses ricos vem acompanhados de seus criados, como Mary (Kelly Macdonald), que serve lady Trentham, ou Henry (Ryan Philippe) assistente de Weissman que acaba sendo colocado junto com os outros criados, além da própria equipe da mansão, como a sra. Wilson (Helen Mirren), Elsie (Emily Watson), George (Richard E. Grant) e o chefe dos criados, o sr. Jennings (Alan Bates).

Conflitos de classe

O diretor Robert Altman conduz a trama em um ritmo bem deliberado, construindo sem pressa as tensões presentes naquela mansão e desvelando aos poucos o viés de civilidade e ordem que recobre aquele espaço. Conforme a câmera de Altman passeia pela mansão em longos takes que nos permitem perceber a encenação complexa de múltiplos atores e figurantes conforme acompanhamos os criados preparando a mansão para a chegada dos convidados ou os ricaços transitando entre as diferentes mesas durante o jantar, temos a dimensão da amplitude daquele espaço e do trabalho de bastidores que os criados fazem para que tudo funcione com precisão.

Essa disparidade de classe está presente desde as primeiras cenas, como o momento em que vemos um casal discutir e a mulher chama atenção de que um dos criados está no recinto com o homem imediatamente respondendo que ele não é ninguém. É uma fala que revela como aquelas pessoas não consideram os servos nem como gente, os tratam como se fossem invisíveis e acham que podem falar o que quiser na presença já que eles não teriam como fazer sentido das indiscrições confessadas. Esse tratamento aos funcionários é visível também no modo como Altman filma os espaços, com planos abertos revelando a imensidão dos amplos salões enquanto os cômodos modestos dos criados são filmados em planos mais fechados e com muita gente dentro do enquadramento para dar a impressão de cômodos menores nos quais as pessoas ficam amontoadas.

A vida invisível

É justamente a invisibilidade com a qual a criadagem é tratada que pessoas como Mary conseguem ouvir os segredos dos nobres aos quais servem (que também fofocam sobre as vidas dos criados) para juntar os diferentes fios de esquemas e segredos guardados pelos habitantes da mansão. Não é à toa que é Mary, usando essa invisibilidade para escutar todo tipo de conversa, que efetivamente resolve o crime e entende como tudo se construiu em cima de décadas de ressentimento pelo anfitrião da mansão.

Ainda que o foco não seja a investigação em si, a quantidade enorme de pessoas confinadas em um espaço restrito fornece uma ampla gama de suspeitos, já que conforme o tempo passa vamos aprendendo os vários ressentimentos que tanto os membros da aristocracia quanto da criadagem nutrem por William McCordle. Muito disso vem também do trabalho do elenco, com Michael Gambon fazendo McCordle como um sujeito irascível e mesquinho, que trata o mundo como sua caixa de brinquedos e acha que pode fazer o que bem entender e usar qualquer um descartando como bem quiser. Maggie Smith faz sua lady Trentham como uma senhora orgulhosa e de língua afiada, cuja espirituosidade esconde comentários venenosos e um conhecimento amplo dos segredos que aquelas pessoas guardam.

Kelly Macdonald traz certa ingenuidade a Mary, uma garota jovem que parece não ter desenvolvido o cinismo dos colegas mais velhos. Ryan Philippe constrói Henry como um estranho a este universo e curioso em entendê-lo, com suas perguntas, como sobre a quantas gerações as famílias daquelas pessoas trabalham como criados, servindo para desenterrar velhos ressentimentos ou despertar novos entre os funcionários. Um ressentimento que é representado por personagens como o Robert vivido por Clive Owen, que apesar de trabalhar ali, sente um claro desdém por aqueles ricos.

Eu poderia comentar individualmente sobre como cada performance do elenco consegue trazer camadas e nuances para seus personagens, mas creio que ficaria redundante. O importante também é como eles operam em conjunto para criar um senso de unidade social coesa no qual cada um sabe a função que cumpre dentro daquele grupo e que tem motivos para apreciar ou detestar cada uma das outras pessoas ali. O tipo de universo amplo e rico que é comum nas produções de Robert Altman.

É justamente por conta desse elenco coeso e direção precisa que Assassinato em Gosford Park funciona tão bem como um cáustico exame de relações de classe e ressentimentos guardados por anos.


Trailer

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