quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Rapsódias Revisitadas – A Paixão de Joana d’Arc

 

Crítica – A Paixão de Joana d’Arc

Review – A Paixão de Joana d’Arc
Lançado em 1928, A Paixão de Joana d’Arc é um marco na história do cinema por múltiplos motivos. Foi o primeiro longa-metragem a narrar a história da heroína francesa Joana d’Arc, que liderou o país contra os ingleses. É também um marco pela maneira de filmar do diretor Carl T. Dreyer que desafiou várias convenções da linguagem audiovisual da época e que mesmo em relação ao cinema de hoje traz uma construção pouco usual.

Julgamento opressivo

A narrativa acompanha o julgamento de Joana d’Arc (Jeanne Falconetti), tratada como herege e bruxa pela Igreja Católica que não reconhece a divindade das visões que ela diz ter e também a repudia por sua insistência em vestes masculinas. Acompanhamos o processo e as seguidas torturas às quais ela é submetida até que tudo culmina em Joana sendo queimada na fogueira como bruxa e incitando uma rebelião popular.

O filme chama atenção por ser filmado quase todo em close e com vários cortes rápidos entre o rosto de Joana e os de seus inquisidores. É uma escolha que mesmo hoje seria considerada pouco usual, mas que serve para a atmosfera opressiva que Dreyer quer construir para o brutal processo ao qual sua heroína é submetida. Os religiosos que a acusam são filmados com uma iluminação em alto contraste, deixando seus rostos marcados por sombra. Essa escolha, somada à decisão de filmar esses indivíduos em contra-plongée, posicionando a câmera em um ângulo baixo em relação a seus corpos, serve para tornar essas figuras em seres soturnos, monstruosos.

Joana, por sua vez, é filmada com uma luz sem contraste, muito mais limpa, que dá a impressão de uma Joana sempre cercada por luz, dotada de uma presença divina. Esse senso de divindade vem também da interpretação de Falconetti, cujos olhos intensos transmitem o fervor extático (no sentido de êxtase mesmo) vivenciado por Joana. O trabalho da atriz nos faz crer que estamos diante de alguém que verdadeiramente crê (ou de fato teve) em um contato direto com o divino e que só cede às acusações dos inquisidores pela pressão e violência que cometem com ela. Curiosamente esse foi o segundo e último filme no qual Falconetti atuou. Atriz de teatro, ela não via muito futuro no cinema, o que deixa de ser irônico considerando que seu rosto acabou se tornando um dos mais marcantes desse meio artístico.

Linguagem disruptiva 

Para além da escolha pouco usual de filmar em closes, Dryer também rompe muitas convenções da linguagem audiovisual no modo como estrutura suas escolhas de planos e montagem, muitas vezes não alinhando seus enquadramentos com as linhas de olhar nos atores, optando em muitos casos por planos holandeses (também chamados de angulações holandesas) que inclinam a câmera em seu eixo horizontal e dão um senso de perspectiva alterada, de que todo aquele julgamento e o modo como Joana é tratada como algo “fora do eixo”.

Ele também ignora a “regra dos 180º” na qual o contraplano de um close cortaria para algo no campo de visão de quem está previamente enquadrado para fazer a montagem soar mais fluida. Isso quando ele não corta para uma ação que não é um desdobramento direto do plano anterior. Claro, hoje muitos desses recursos se difundiram e passaram a ser usados por diferentes cineastas (o cinema de Yasujiro Ozu tem muitas escolhas semelhantes), mas na época essas decisões eram rupturas bastante radicais.

Apesar de filmado quase todo em closes que não permitem que a gente veja muito do espaço ao redor das personagens, contribuindo para a sensação de confinamento e opressão experimentada pela protagonista, o filme teve um grande investimento em produção. Os sets foram os mais caros feitos na época, com um imenso trabalho de pesquisa que recorreu a manuscritos e diagramas medievais para tentar reproduzir com certa fidelidade o espaço no qual o julgamento de Joana ocorreu. A produção construiu um castelo cenográfico amplo, como um espaço único e interconectado ao invés de locações separadas, com direito a uma ponte levadiça funcional.

O fato desses espaços e da complexidade do cenário ser pouco visível no produto final irritou os produtores por conta dos altos valores investidos no filme, que custou 7 milhões de francos (uma fortuna para época, seria equivalente ao filme ter custado o que hoje custa um blockbuster hollywoodiano). Dryer teria defendido esses gastos afirmando que o escopo do sets ajudou o elenco a entrar nos personagens e entregar performances convincentes.

Convincente é uma palavra que de fato se aplica ao filme, já que mesmo depois de quase um século de sua realização A Paixão de Joana d’Arc segue como um arrebatador retrato das dimensões sagradas e profanas da humanidade.

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