terça-feira, 15 de outubro de 2024

Crítica – O Aprendiz

 

Análise Crítica – O Aprendiz

Review – O Aprendiz
Donald Trump já ocupava os holofotes décadas antes de sua entrada na política. O Aprendiz, ao contrário do que o título sugere, não foca no reality show que ele apresentou no início dos anos 2000, mas na relação entre Trump e Roy Cohn, advogado constantemente associado a figuras da máfia e que foi parte fundamental do sucesso inicial de Trump.

Advogado do diabo

A narrativa começa no final dos anos 70 quando um jovem Donald Trump (Sebastian Stan) está assumindo o negócio imobiliário do pai, Fred (Martin Donovan) e enfrenta um processo na justiça federal que o acusa de discriminar inquilinos negros. O processo põe em pausa os planos de Trump de sair do ramo de habitações populares e começar a investir em hotéis de luxo, então ele procura a ajuda do advogado Roy Cohn (Jeremy Strong, de Succession), para ajudá-lo. A trama então segue o desenvolvimento da relação entre Trump e Cohn, mostrando a influência do advogado no empresário.

Strong, sempre um ator dedicado, acerta na natureza implacável de Cohn, um sujeito sempre na ofensiva, sem qualquer norte moral que não a necessidade de vencer e que emprega qualquer meio para conseguir o que quer. Ao mesmo tempo, Strong exibe as contradições subjacentes ao advogado, um homem gay que não assume isso publicamente e se cerca de figuras conservadoras e assume posições políticas igualmente conservadoras que certamente são prejudiciais a pessoas LGBTQIA+.

Desde as primeiras conversas entre Trump e Cohn é visível como muito do Trump que conhecemos hoje se mostra presente na visão de mundo de Cohn sobre fabricar a própria realidade, sempre negar tudo e sempre partir para o ataque. Ao mesmo tempo, a parceria de ambos não é apenas de negócios, com a crescente amizade entre Donald e Roy operando em oposição à relação distante entre Trump e seu pai, Fred. Se de um lado Fred é um sujeito distante, incapaz de demostrar afeto ou fazer qualquer comentário positivo sobre o filho (talvez na crença de que isso o tornará durão), Trump encontra em Cohn a aprovação moral e afetiva que não encontra com pai.

Claro, a aprovação paterna não é o único motivo de Trump simpatizar com Cohn, já que o advogado se coloca justamente como uma porta de entrada para o universo da elite tradicional nova-iorquina que Trump tanto anseia em entrar e ser aceito. O protagonista não apenas que ser rico, ele quer ser reconhecido, adorado, celebrado, a riqueza seria só um meio para isso. É esse ego frágil, inclusive que coloca em xeque a amizade de ambos.

A criatura de Frankenstein

Considerando o quanto Trump é desenvolvido como um personagem que anseia por aceitação, não é surpreendente que ele comece a rechaçar Cohn justamente quando o advogado começa a criticar a expansão rápida demais de seus negócios, como se Trump buscasse o advogado apenas para obter o reforço positivo que tinha do pai e perde o interesse nele assim que passa a ouvir críticas. Se Cohn parecia enxergar Trump como um igual em termos de implacabilidade e pragmatismo, o advogado logo vê que seus ensinamentos só pioraram o ego inflado e a personalidade mesquinha do empresário. O filme deixa evidente as inúmeras maneiras pelas quais poderíamos considerar Roy Cohn um crápula, mas, como um gângster das antigas, Cohn ainda tem um senso de honra e de lealdade.

Como um Dr. Frankenstein que vê sua criatura se voltar contra si, Cohn só percebe tarde demais o monstro que criou. Alguém que só age por interesse próprio, que não vê nada além de si mesmo e é incapaz de demonstrar um mínimo de empatia, mesmo por alguém que foi tão responsável por sua ascensão como é o caso de Cohn.

Sebastian Stan, por sinal, situa essa mesquinhez em sentimentos bem reais, como a crença de que demonstrar emoção é uma fraqueza ou a de que ele só tem valor enquanto indivíduo se ele for um vencedor. Sentimentos (ou ausência deles) que vemos em cena no momento em que encontramos Trump sozinho no banheiro depois da morte do irmão mais velho, Fred Jr. (Charlie Carrick), e ele se recusa a chorar mesmo estando visivelmente abalado. Até as tentativas da esposa, Ivana (Maria Bakalova), em consolá-lo são rechaçadas com agressividade, como se ele não se permitisse se colocar naquela posição de vulnerabilidade ou de admitir que está mal.

Seria fácil interpretar alguém como Trump e cair na caricatura, mas Stan evita excessos em uma composição que evoca de maneira menos histriônica (em relação ao sujeito real) os maneirismos e cadência de fala bem peculiares de Donald Trump. O trabalho do ator e do roteiro estão focados nesse estudo de personagem, em entender o que move esse indivíduo, sem, porém, usar esse entendimento como desculpa para suas ações. Na verdade eu diria que o filme mostra como é perigoso alguém tão profundamente inseguro e mesquinho ter tanto poder e dinheiro nas mãos, demonstrando o caminho que o levou a ser quem é e as consequências monstruosas de suas ações, incluindo uma cena de estupro marital.

Alienação afetiva

Por outro lado, o filme lida de maneira muito passageira com alguns elementos da história. Talvez o mais significativo deles seja a relação com o irmão mais velho, sempre tratado como um fracassado pelo pai e por Donald por não ter interesse no mundo dos negócios e ter se tornado piloto de aviões. Fred Trump chega a desmerecer o filho chamando-o de “motorista de ônibus voador”, um menosprezo que Donald replica (talvez por buscar aprovação do pai) e que certamente contribui para o complexo de inferioridade de Fredd Jr e que tem algum papel na conduta autodestrutiva que o levou ao alcoolismo que o matou. O filme, porém, passa tão rápido por essa relação complexa e problemática que quem não conhece a história dessa família pode achar que Fred Jr era só um bon vivant problemático que merecia o rechaço da família.

Do mesmo modo, a relação com Ivana acaba sendo pouco desenvolvida, com a perda de interesse por Trump nela soando mais como um capricho do empresário ou seu desejo por mulheres mais novas, quando o próprio filme sugere, embora não explore, que muito dessa perda de interesse se dá pelo ego frágil de Trump. Em uma discussão, por exemplo, ele reclama com Ivana por ela passar muito tempo com integrantes de um clube da elite nova-iorquina que não gosta muito dele. A conduta de Trump soa menos como ciúme da esposa e mais por ela ser aceita pela mesma elite tradicional que ele deseja, mas não consegue, ser plenamente visto como membro. Nas cenas em que o casal está sob as câmeras, Trump se mostra visivelmente incomodado com a facilidade que Ivana tem em chamar para si os holofotes, deixando-o sem a atenção que deseja.

A ideia de Trump sempre presente na mídia se faz presente na própria imagem. O início do filme, que se passa nos 70, exibindo uma granulação que remete a produções filmadas com película enquanto as cenas nos anos 80 trazem linhas de cor que emulam a imagem em VHS, como se tudo que estivéssemos vendo fossem imagens de arquivo. É, talvez, o elemento estilístico mais marcante do filme, já que o diretor iraniano Ali Abbasi (de filmes como Holy Spider) conduz o filme com elementos já bem convencionais de cinebiografias quando a produção provavelmente se beneficiaria de um clima mais caótico que fizesse jus à energia intensa de Roy Cohn e trajetória meteórica de Trump. Sim, mesmo dentro dessa convencionalidade é possível ver um cuidado na construção dos planos e da montagem, como na conversa telefônica perto do final que filma Trump em planos abertos que revelam a opulência de sua mansão e fazem contraste com Cohn falando com ele ao telefone sozinho e acamado dentro de sua casa vazia e escura.

O final, no entanto, encontra uma perfeita metáfora visual da preocupação de Trump em evocar uma imagem de riqueza que distraia os outros de seu interior mesquinho e vulgar na cena em que ele presenteia Roy Cohn com um par de abotoadoras. Embora diga que são de ouro e cravejadas por diamantes, Roy logo descobre que elas são uma falsificação tosca. O presente valioso que ele tinha para o antigo aliado não passava de uma tranqueira sem valor. Como o próprio Trump, o presente carrega uma aparência de refinamento, mas qualquer inspeção mais próxima revela a fraude que há por trás.

O momento também pode ser entendido como um símbolo de que Trump não passa de uma versão falsificada de Cohn, algo evidenciado pela cena seguinte em que Trump conversa com um jornalista e narra as regras do sucesso ensinadas por Cohn como se fossem de sua própria autoria. O presente é, inclusive, uma prática bem real de Trump, já que em 2016 o ator Charlie Sheen revelou em uma entrevista que recebeu de presente de casamento de Trump (que não fora convidado) um par de abotoadoras falsas similar às do filme.

Nesse sentido, O Aprendiz é um competente estudo de personagem que se beneficia da performance de sua dupla de protagonistas, ainda que fique na superfície de alguns de seus arcos.

 

Nota: 7/10


Trailer

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