Ilha do esquecimento
A trama é centrada na garçonete Frida (Naomi Ackie). Um dia ela vai com a amiga Jess (Alia Shawkat) a uma festa e conhece o bilionário da tecnologia Slater (Channing Tatum). Ele as convida para passar uns dias em sua ilha particular e a dupla aceita. Chegando lá conhecem outros amigos e amigas do bilionário e passam seus dias na piscina, tomando drinks, comendo comida refinada e em festas que nunca terminam. Com o tempo, porém, Frida começa a se sentir esquisita, já que a proibição de celulares ou relógios a faz perder noção de há quanto tempo está ali e ocorrências estranhas, como outros convidados sumindo e ninguém lembrando deles, a fazem suspeitar de que há algo muito estranho ocorrendo ali.
O filme começa como uma sátira social, mostrando o cotidiano de festas constantes desses ricaços autoindulgentes como algo dotado de uma dimensão de tédio. Como se eles tivessem que ficar inventando coisas para fazer para preencher o excesso de tempo livre que têm em mãos. Boa parte dos amigos de Slater são construídos como figuras patéticas que tem opiniões incrivelmente elevadas a respeito de si mesmos, mas sem nunca demonstrar toda a complexidade que eles acham ter.
Aos poucos, porém, vamos suspeitando que esses homens que soam toscos são mais ameaçadores do que parecem conforme Frida e Sarah (Adria Arjona, de Assassino Por Acaso), outra garota levada para a ilha, desconfiam que estão fazendo algo sinistro com elas e todas as garotas da ilha. A ideia de manipular as memórias das mulheres e fazê-las esquecer dos abusos acaba sendo, em si, outra forma de abuso, servindo como metáfora para o gaslighting cometido por pessoas abusivas que tentam convencer suas vítimas de que nada errado aconteceu e que elas estão malucas por acharem que existe algum problema.
Prazeres violentos encontram fins violentos
A ideia de esquecimento também dialoga com o modo pelo qual a sociedade convenientemente se permite esquecer ou deixar de lado os abusos cometidos contra mulheres por homens em posição de poder. Por mais que inicialmente haja revolta, com o tempo tudo é esquecido e essas pessoas voltam aos holofotes sem muito prejuízo. Nesse sentido, a trama reflete como mulheres também se colocam nessa posição de conivência com os abusos masculinos, usando a personagem interpretada por Geena Davis para ilustrar isso.
Conforme Frida vai se lembrando de tudo o que Slater e seus amigos fizeram, o filme entra mais e mais no terreno do horror conforme vemos o que esses homens são capazes de fazer quando recebem a certeza de imunidade em relação aos seus atos. O clímax do filme oferece uma catarse sangrenta em relação a toda violência que foi cometida ali, mas isso não significa que a produção não encontre problemas em seu desfecho.
Na verdade, o primeiro problema vem do filme informar já na primeira cena que Slater já tinha sido alvo de denúncias antes. Isso elimina boa parte do suspense e da ambiguidade da primeira metade do filme, já que assim que as personagens sentem algo estranho, somos capazes de imediatamente deduzir o que está havendo sem qualquer dúvida. Seria mais interessante se fossemos apresentados a Slater como um sujeito de boa reputação e só depois descobríssemos que ele tinha sido alvo de denúncias e conseguiu fazê-las sumir. Eu entendo que a informação é colocada ali para mostrar como a sociedade sempre dá segundas chances a pessoas com esse alcance de poder e riqueza, mas prejudica o suspense.
Já em relação ao final (aviso que o parágrafo a seguir contém SPOILERS), a escolha de Frida faz sentido em termos de uma vingança contra seu abusador, de torná-lo exatamente o que ele fez dela, controlando-o através do esquecimento. É um desfecho que o filme enquadra como uma vitória da protagonista e, até certo ponto, não deixa de ser já que ela rompeu com o ciclo de abuso ao qual estava submetida. Por outro lado, se sujeitar a ficar ao lado de seu abusador, mesmo que ele esteja sob seu controle, soa como algo pouco saudável. Imagino que simplesmente matá-lo seria fácil demais e não resolveria o problema das estruturas que são permissivas com alguém assim, mas terminar ao lado dele, ainda que no controle da situação, não me soa como a vitória que o filme enquadra. Talvez fosse melhor se ela usasse o controle para fazê-lo casar com ela e depois o matasse simulando um acidente, terminando o filme com ela assumindo todo o império tecnológico de Slater e prometendo mudanças.
Ainda assim, Pisque Duas Vezes é uma competente estreia de Zoe Kravitz como
diretora, mostrando uma visão singular conforme ela transita entre a sátira e o
horror para refletir sobre os impactos do abuso masculino.
Nota: 7/10
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