sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Crítica – Disclaimer

 

Análise Crítica – Disclaimer

Review – Disclaimer
Enquanto assistia o último episódio da minissérie Disclaimer me lembrei da frase do crítico Roger Ebert sobre o cinema ser uma máquina de gerar empatia. O modo como narrativas nos mobilizam e nos fazem aderir a um personagem, mesmo quando ele é moralmente duvidoso, e o poder da narrativa em nos fazer agir por conta desses afetos que são mobilizados são temas centrais da produção criada e dirigida pelo diretor Alfonso Cuarón. É uma história que nos lembra como histórias podem ser usadas para convencer a gente sobre um ponto de vista, mesmo que esse ponto de vista não seja capaz de dar conta de toda a história.

Passado esquecido

A trama gira em torno de Catherine (Cate Blanchett), uma documentarista que construiu sua carreira em revelar transgressões que instituições querem esconder. Ela tem seu próprio segredo do passado que está prestes a ser revelado por conta de Stephen (Kevin Kline), um professor recém desempregado que encontra um livro escrito pela esposa falecida, Nancy (Leslie Manville). O livro se baseia na história real da morte de seu filho Jonathan (Louis Partridge) que se afogou na Itália décadas atrás e pinta de maneira extremamente negativa a mulher casada com a qual se relacionou. A mulher em questão é Catherine e Stephen vê no livro uma maneira de se vingar dela, já que a julga responsável pelo afogamento de Jonathan.

Blanchett faz de Catherine uma mulher focada na carreira, emocionalmente distante de seu filho Nicholas (Kodi Smit-McPhee), a quem trata como um fracassado. Ela também tem uma relação distante com o marido, Robert (Sacha Baron Coen), cuja casamento já esfriou faz tempo. A personalidade abrasiva de Catherine em oposição ao jeito de professor pacato de Stephen, bem como sua expressão de constante desalento pela morte do filho, nos fazem pensar que a repórter é mesmo uma megera egoísta que teve um caso com um garotão que conheceu durante as férias e depois o deixou morrer para não ter que lidar com as consequências do que fez.

Como a série não apresenta logo de início o segredo de Catherine ou o que a conecta a Stephen, a trama vai criando um mistério a respeito do que aconteceu exatamente no passado deles, dado o modo injustiçado com o qual Stephen se comporta e tenta usar o livro para abalar Catherine ou o modo agressivo com a qual a documentarista se comporta quando toma ciência do livro e do dano potencial que ele pode lhe causar.

De vítima a algoz

Conforme aprendemos sobre a morte de Jonathan, a trama demonstra querer que simpatizemos com Stephen em seu esforço para destruir a reputação de Catherine, mas, ao mesmo tempo, cria complicações morais que desestabilizam o senso de uma justa retribuição da parte do professor para alguém que se torna cada vez mais cruel. Se de início o livro é um instrumento para danificar a reputação de Catherine, inclusive prejudicando seu casamento ao mandar uma cópia do livro e de fotos de Catherine nua tiradas por Jonathan para o escritório de Robert, conforme Stephen se aproxima de Nicholas e passa a manipulá-lo as coisas ficam mais sombrias.

O professor identifica desde o início que o garoto é um jovem inseguro, carente e frágil, com um vício em drogas que tem um alto potencial destrutivo em sua vida. Stephen explora essa fragilidade de Nicholas usando um perfil falso de rede social para se passar por um adolescente e puxa conversa com ele, o instigando a ler seu livro e aos poucos insinuando a conexão do livro com a realidade, explorando a fragilidade do garoto e a relação ruim entre ele e a mãe. A crueldade com a qual Stephen manipula Nicholas e o induz a algo extremo como uma tentativa de suicídio ou overdose abala a possibilidade de termos empatia por ele, já que por mais que seja compreensível que ele queira justiça por seu filho, Nicholas não tem nada a ver com a história.

Empatia deslocada

A trama tensiona nossa aderência emocional a esses personagens até o último episódio. Conforme Stephen ultrapassa certos limites, entendemos mais a urgência de Catherine em tentar detê-lo, mesmo que ela também recorra a expedientes pouco éticos. Em um momento ela pede a uma assistente para investigar o professor e convenientemente não corrige a funcionária quando a vê anotar algo como “possível pedófilo?” em seu caderno, como se quisesse destruir a reputação de Stephen independente de ser verdade ou não. 

O maior impacto desse tensionamento de ética e empatia entre esses dois personagens vem no episódio final quando Catherine finalmente confronta Stephen e conta sua versão do que aconteceu entre ela e Jonathan, e flashbacks revelam que o real motivo de Jonathan ter terminado com a namorada com a qual viajou para a Itália são bem diferentes (e muito mais sombrios) do que Nancy narrara em seu livro. Mais que isso, descobrimos que Nancy sabia da conduta do filho com a ex namorada e ainda assim alterou os eventos no livro para retratá-lo sob uma luz positiva e fazer Catherine parecer ainda pior.

É uma revelação que nos lembra como uma narrativa nos faz acreditar automaticamente em um protagonista e não buscar ver o lado de outros personagens e do perigo disso. Quando acompanhamos um personagem vemos o mundo sob seu ponto de vista e o tomamos por verdade, aderindo a ele. Narrativas apelam para nossa empatia e envolvimento emocional para nos fazer aceitar a perspectiva de um personagem como a verdade. É assim que a ficção usa nossa empatia para nos mobilizar no mundo real, inclusive nos fazendo crer em ideias que vão em oposição à realidade.

Espectador em julgamento

A série, no entanto, não é ingênua em considerar que a ficção manipula o espectador ou que ele é uma figura passiva no processo. Quando Robert descobre a verdade e questiona a Stephen porque ele nunca questionou a versão de Nancy, Stephen duramente devolve a pergunta a Robert, indagando a ele porque o filantropo teve tanta facilidade em crer naquela história que pintava a esposa como uma megera sem coração sem que ele se desse ao trabalho de querer ouvir o lado dela. O diálogo nos lembra como a espectatorialidade é um ato pragmático do espectador e como interpretamos uma obra a partir de nossa bagagem cultural e vivências pessoais.

No caso de Robert, ele não foi enganado ou manipulado a acreditar em uma narrativa enganosa sobre Catherine. Ao ser confrontado com o livro ele fez a escolha ativa de acreditar naquilo sem nem querer ouvir Catherine porque aquela história confirmava todas as crenças que tinha em relação à esposa e todas as inseguranças que tinha a respeito de si. Ele acredita naquela história a despeito dela não ser verdade porque ela confirma sua visão de mundo.

Esse diálogo entre Robert e Stephen não se refere somente aos vieses de Robert, mas aos nossos vieses como espectadores. Acreditamos facilmente na história de Stephen e julgamos Catherine como uma adúltera egoísta, como uma péssima mãe que larga o filho sozinho numa praia desconhecida para dormir porque ela confirma vários sensos comuns sobre mulheres que não se encaixam nos padrões sociais do que uma mulher, esposa e mãe deve ser. Aderimos à versão de Stephen porque ela apela para a ideia de que se uma mulher prioriza a carreira é porque ela é egocêntrica, que se uma mulher não ama seu filho incondicionalmente e pensa em si por um momento ela é automaticamente uma péssima mãe.

Não deixa de ser irônico, portanto, que é justamente Nancy, uma esposa e mãe dedicada, que colocou o filho em primeiro lugar, inclusive fechando os olhos para suas falhas de caráter, quem pôs em marcha o ato mais cruel de toda a série, de arruinar uma mulher que fora vítima de seu filho e de impelir o marido, que também corresponde a todos os clichês de “cidadão de bem” a matar um garoto que não lhe causou mal algum. Ao ser a mãe que faz tudo pelo filho, Nancy quase destruiu a vida de pessoas que não fizeram nada além de serem vítimas de Jonathan.

Partindo de um complexo estudo de personagem sobre culpa e o peso de segredos, Disclaimer expande suas ideias para ponderar sobre como a ficção mobiliza nossa empatia.

 

Nota: 9/10


Trailer

Nenhum comentário: