segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Crítica – Herege

 

Análise Crítica – Herege

Review – Herege
Aproveitando sua boa fase como vilão nos filmes do Paddington ou no divertido e pouco visto Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes (2023), Hugh Grant resolve fazer um vilão de terror neste Herege. A produção visa ser um questionamento sobre fé e instituições religiosas conta a história de duas missionárias mórmons, Barnes (Sophie Tatcher) e Paxton (Chloe East), que se veem presas na casa do estranho Sr. Reed (Hugh Grant) depois dele convidá-las para falar mais do mormonismo. Na casa, Reed irá testar as convicções delas em situações que começam desconfortáveis, se tornam tensas e logo se transformam em desafios mortais.

A prisão da fé

A trama começa construindo a tensão aos poucos conforme a interação entre as duas missionárias e Reed é tomada por perguntas estranhas e o anfitrião, ao mesmo tempo em que parece solícito, constantemente tem segundas intenções. Hugh Grant usa seu habitual charme para construir essa ambiguidade, com um tom de voz e maneirismos que o fazem soar afável apesar de cada fala dele soar precisamente calibrada para abalar as duas garotas. O contraste entre seus modos gentis e a intensidade brutal de suas ações ajudam a torná-lo uma figura assustadora, já que ele encara toda aquela loucura com uma normalidade que ressalta o quanto sua conduta é cruel. Barnes e Paxton, por sua vez, aos poucos vão percebendo que há algo errado com Reed, mas se prendem demais a convenções sociais, tentando fingir que está tudo bem e agindo de maneira gentil, até ser tarde demais.

Como tudo se passa dentro de um único espaço confinado, muito da tensão depende das interações entre esses personagens e como o filme as constrói e ambos funcionam muito bem. O trabalho de câmera e montagem passeia entre closes de rostos e planos-detalhe de pequenos gestos ou inflexões sutis de expressão para nos revelar o que há por trás de cada fala e cada reação do trio de personagens. São pessoas que estão a todo momento se estudando e a condução do filme é eficiente em transmitir a tensão e a urgência desse embate no qual uma palavra errada, uma expressão óbvia demais pode mostrar cedo demais suas intenções ao adversário.

O roteiro é inteligente ao construir suas reviravoltas, sempre bem amarradas com as informações previamente estabelecidas e coerente com os personagens, inserindo guinadas na dinâmica do trio nas quais o controle da situação parece variar entre um personagem e outro, conferindo um grau de imprevisibilidade que contribui para tornar tudo mais tenso. Essas guinadas também dão espaço para aproveitar cada personagem. Se Paxton inicialmente soa mais ingênua e mais mansa, temendo confrontar Reed, conforme a narrativa avança ela é obrigada a tomar a frente da situação e tem espaço para mostrar a sua astúcia.

Medo e controle

Em meio a toda a tensão, o filme tenta levantar questionamentos sobre a fé, apontando como muitas religiões partem de mitos similares e como certas doutrinas se tornam mais populares do que as outras. Por vezes isso é um pouco didático demais, mas essas questões não de ser instigantes para pensar nas diferentes transformações e apropriações de textos religiosos ao longo da história da humanidade e também para pensarmos no que impele as pessoas a buscar religiões e ponderar sobre a metafísica do universo.

Esses questionamentos terminam por serem mais instigantes do que as respostas em si que o filme tenta dar. O senhor Reed passa boa parte da trama falando que descobriu a verdadeira e única religião, fazendo mistério sobre suas conclusões. A impressão é que o filme irá oferecer algum insight provocador sobre a natureza da fé e embora trate a revelação final de Reed como se fosse exatamente isso, a verdade é que o texto não consegue fazer muito além de repetir a ideia de que religião é um mecanismo de controle.

Certamente a religião pode ser (e é) usada para isso, mas reduzir algo tão complexo (mesmo levando em conta apenas os paradigmas judaico-cristãos aos quais o filme adere) a apenas isso, ignorando uma série de dimensões psicológicas, afetivas, antropológicas e sociais das vivências religiosas parece ir na contramão dos questionamentos mais complexos que o filme tenta levantar. Sim, o texto reconhece que Reed não é exatamente um gênio da teologia, algo evidenciado na cena em que Barnes aponta os vários sofismas desonestos e generalizações grosseiras feitos pelo anfitrião, revelando a compreensão limitada (ou enviesada) que ele tem dos temas que tenta debater, mas o problema é que a narrativa trata a revelação da “verdadeira” religião como uma grande sacada, quando na verdade é algo que qualquer calouro revoltado de ciências humanas seria capaz de dizer, sendo bem mais banal do que o filme pensa que é.

Considerando o aviso de “abençoada seja essa bagunça” que Paxton e Barnes veem na sala de Reed seria mais interessante se o filme fosse por um caminho mais niilista e a “religião verdadeira” de Reed fosse o caos de uma existência sem propósito no qual cada um deveria se libertar de dogmas religiosos e fazer o que bem entende (como matar, no caso dele), aceitando que nossas vidas nascem do acaso e não seguem qualquer plano divino. Isso serviria para pensar no que impele as pessoas a procurarem a religião e também serviria como uma motivação mais consistente do porquê Reed fazer o que faz, como um sociopata que usa seu conhecimento em teologia para exercer o sadismo que tanto deseja ao invés de meramente um acadêmico desiludido que resolveu provar ao mundo de qualquer a fraude das religiões partindo de conexões rasos e generalizações simplistas.

Mesmo que a revelação final deixe na superfície a discussão sobre crença e religião, Herege é tão competente na sua atmosfera de tensão e no desenvolvimento do embate entre seus três protagonistas que entrega um envolvente horror.

 

Nota: 8/10


Trailer

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