A prisão da fé
A trama começa construindo a tensão aos poucos conforme a interação entre as duas missionárias e Reed é tomada por perguntas estranhas e o anfitrião, ao mesmo tempo em que parece solícito, constantemente tem segundas intenções. Hugh Grant usa seu habitual charme para construir essa ambiguidade, com um tom de voz e maneirismos que o fazem soar afável apesar de cada fala dele soar precisamente calibrada para abalar as duas garotas. O contraste entre seus modos gentis e a intensidade brutal de suas ações ajudam a torná-lo uma figura assustadora, já que ele encara toda aquela loucura com uma normalidade que ressalta o quanto sua conduta é cruel. Barnes e Paxton, por sua vez, aos poucos vão percebendo que há algo errado com Reed, mas se prendem demais a convenções sociais, tentando fingir que está tudo bem e agindo de maneira gentil, até ser tarde demais.
Como tudo se passa dentro de um único espaço confinado, muito da tensão depende das interações entre esses personagens e como o filme as constrói e ambos funcionam muito bem. O trabalho de câmera e montagem passeia entre closes de rostos e planos-detalhe de pequenos gestos ou inflexões sutis de expressão para nos revelar o que há por trás de cada fala e cada reação do trio de personagens. São pessoas que estão a todo momento se estudando e a condução do filme é eficiente em transmitir a tensão e a urgência desse embate no qual uma palavra errada, uma expressão óbvia demais pode mostrar cedo demais suas intenções ao adversário.
O roteiro é inteligente ao construir suas reviravoltas, sempre bem amarradas com as informações previamente estabelecidas e coerente com os personagens, inserindo guinadas na dinâmica do trio nas quais o controle da situação parece variar entre um personagem e outro, conferindo um grau de imprevisibilidade que contribui para tornar tudo mais tenso. Essas guinadas também dão espaço para aproveitar cada personagem. Se Paxton inicialmente soa mais ingênua e mais mansa, temendo confrontar Reed, conforme a narrativa avança ela é obrigada a tomar a frente da situação e tem espaço para mostrar a sua astúcia.
Medo e controle
Em meio a toda a tensão, o filme tenta levantar questionamentos sobre a fé, apontando como muitas religiões partem de mitos similares e como certas doutrinas se tornam mais populares do que as outras. Por vezes isso é um pouco didático demais, mas essas questões não de ser instigantes para pensar nas diferentes transformações e apropriações de textos religiosos ao longo da história da humanidade e também para pensarmos no que impele as pessoas a buscar religiões e ponderar sobre a metafísica do universo.
Esses questionamentos terminam por serem mais instigantes do que as respostas em si que o filme tenta dar. O senhor Reed passa boa parte da trama falando que descobriu a verdadeira e única religião, fazendo mistério sobre suas conclusões. A impressão é que o filme irá oferecer algum insight provocador sobre a natureza da fé e embora trate a revelação final de Reed como se fosse exatamente isso, a verdade é que o texto não consegue fazer muito além de repetir a ideia de que religião é um mecanismo de controle.
Certamente a religião pode ser (e é) usada para isso, mas reduzir algo tão complexo (mesmo levando em conta apenas os paradigmas judaico-cristãos aos quais o filme adere) a apenas isso, ignorando uma série de dimensões psicológicas, afetivas, antropológicas e sociais das vivências religiosas parece ir na contramão dos questionamentos mais complexos que o filme tenta levantar. Sim, o texto reconhece que Reed não é exatamente um gênio da teologia, algo evidenciado na cena em que Barnes aponta os vários sofismas desonestos e generalizações grosseiras feitos pelo anfitrião, revelando a compreensão limitada (ou enviesada) que ele tem dos temas que tenta debater, mas o problema é que a narrativa trata a revelação da “verdadeira” religião como uma grande sacada, quando na verdade é algo que qualquer calouro revoltado de ciências humanas seria capaz de dizer, sendo bem mais banal do que o filme pensa que é.
Considerando o aviso de “abençoada seja essa bagunça” que Paxton e Barnes veem na sala de Reed seria mais interessante se o filme fosse por um caminho mais niilista e a “religião verdadeira” de Reed fosse o caos de uma existência sem propósito no qual cada um deveria se libertar de dogmas religiosos e fazer o que bem entende (como matar, no caso dele), aceitando que nossas vidas nascem do acaso e não seguem qualquer plano divino. Isso serviria para pensar no que impele as pessoas a procurarem a religião e também serviria como uma motivação mais consistente do porquê Reed fazer o que faz, como um sociopata que usa seu conhecimento em teologia para exercer o sadismo que tanto deseja ao invés de meramente um acadêmico desiludido que resolveu provar ao mundo de qualquer a fraude das religiões partindo de conexões rasos e generalizações simplistas.
Mesmo que a revelação final deixe
na superfície a discussão sobre crença e religião, Herege é tão competente na sua atmosfera de tensão e no
desenvolvimento do embate entre seus três protagonistas que entrega um
envolvente horror.
Nota: 8/10
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