quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Crítica – Wicked

 

Análise Crítica – Wicked

Review – Wicked
Na Broadway, o musical Wicked trazia uma interessante releitura para a mitologia do universo de O Mágico de Oz, ponderando como sobre o perigo de ouvir apenas um lado da história e como isso resulta em maniqueísmos injustos. Fiquei curioso com o anúncio de uma adaptação para cinemas, principalmente pela escolha de dividir o musical em duas partes, que evitaria ter que condensar demais a narrativa e prejudicar a construção dos personagens e conflitos, como aconteceu em Caminhos da Floresta (2014). Sim, esse filme é só a primeira metade da história.

Metáforas da diferença

A narrativa começa com a derrota da bruxa Elphaba (Cynthia Erivo) no filme de O Mágico de Oz e enquanto a terra de Oz comemora a sua morte, Glinda (Ariana Grande), a bruxa boa, relembra o passado das duas e como ninguém nasce naturalmente maligno. Acompanhamos então a juventude das duas e como elas estudaram juntas para se tornarem feiticeiras, com Elphaba sempre demonstrando uma aptidão natural para magia enquanto Glinda não tinha o mesmo talento embora desejasse dominar a magia. As habilidades de Elphaba chamam a atenção da professora Morrible (Michelle Yeoh), que a consideram capaz de ajudar o grande Mágico de Oz (Jeff Goldblum), embora a aparência verde de Elphaba desperta preconceito e intolerância nos colegas.

O fato da pele de Elphaba ser vista como algo abjeto serve como metáfora para o preconceito racial, principalmente pelo contraponto dela ser sempre alvo de ojeriza enquanto Glinda, uma garota loira padrão, é sempre paparicada por todos a sua volta e tem suas ações sempre admiradas ou justificadas pelos demais. Isso fica evidente na cena em que Glinda muda seu nome em apoio a um professor que foi perseguido e todos os colegas a aplaudem como uma grande ativista sendo que o gesto vazio não ajuda em nada quem foi alvo de perseguição e só serve para alimentar a reputação da própria Glinda, celebrada como uma boa pessoa apesar de não ter feito nada.

Confesso que me surpreendi com o trabalho de Ariana Grande como Glinda, uma patricinha mimada que acha que o mundo gira ao redor de si e suas vontades e não consegue enxergar além do próprio ego. Grande acerta no humor dessa garota ensimesmada que não tem qualquer noção real de como o mundo funciona e ao mesmo tempo dá a ela um grau de ingenuidade que nos faz ver sua conduta não como fruto de um egocentrismo tóxico, mas de alguém que viveu tão presa em sua bolha de privilégios que se desconectou da realidade e não consegue perceber a própria alienação.

Grande é responsável pelos momentos mais divertidos do filme e em muitas ocasiões ofusca a Elphaba de Erivo, não por sua performance faltar algo, mas simplesmente porque nessa primeira parte a personalidade mais expansiva de Glinda chama mais atenção diante de uma Elphaba ainda retraída e insegura. Erivo faz muito bem essa insegurança e senso de desamparo que marcam Elphaba, alguém que foi tratada como inferior até pelo próprio pai e anseia por aprovação mesmo que negue isso em voz alta. A promessa de trabalhar como o Mágico de Oz vem justamente como esse meio para que ela consiga provar seu valor, ainda que a realidade do encontro lhe traga horríveis verdades sobre o mundo. Se nas histórias de O Mágico de Oz Elphaba é sempre retratada como uma bruxa maligna e cruel, aqui a vemos como uma rebelde que se opôs às perseguições e intolerância do mágico, um trambiqueiro que mantinha seu poder com base em mentiras. É um lembrete de como relato histórico é construído por vencedores e dos perigos de se analisar um evento sob um ponto de vista único.

Desafiando a gravidade

A fragilidade e postura defensiva com a qual conhecemos Elphaba vai mudando conforme ela desenvolve sua amizade com Glinda e a relação das duas lhe dá mais confiança em suas crenças e suas habilidades. A transformação da personagem culmina no clímax do filme quando Elphaba desafia o Mágico e demonstra o quanto ela se tornou mais confiante em si e suas convicções na performance poderosa de Erivo da canção Defying Gravity.

O número musical é uma culminação apoteótica do arco de Elphaba ao longo do filme e Erivo convence da confiança e força da personagem naquele momento. É uma canção que define a narrativa e que se não funcionasse tiraria todo o impacto do desfecho. Alguém até poderia que é uma canção boa demais para dar errado, mas se Cats (2019) conseguiu estragar a cena de Memories mesmo com a voz de Jennifer Hudson e a qualidade da canção, então não dá pra automaticamente dizer que uma canção boa automaticamente vai sempre funcionar.

Aliás, senso de espetáculo e encantamento é algo que o filme oferece de sombra. Com seus números musicais encantando pelas performances do elenco, em especial Grande e Erivo, bem como pela energia com a qual são filmados, muitas vezes em planos amplos que ressaltam a presença de vários dançarinos e dos cenários práticos em que tudo ocorre. Seria fácil abusar da computação gráfica para criar os ambientes fantásticos de Oz, mas o filme impressiona com o quanto é feito com sets reais e efeitos práticos, que ajudam na sensação de que Oz poderia realmente existir. A montagem é outro elemento que confere energia e senso de humor aos números musicais e o melhor exemplo talvez seja a canção entre Glinda e Elphaba no início, quando elas cantam sobre o quanto se odeiam. O número recorre a telas divididas e a planos alternados que ressaltam a oposição de personalidade e visual entre as duas, cuja contraposição é responsável pelo humor da canção e da cena.

Claro, ajuda que o material original seja tão bom, mas com tantos filmes musicais baseados em ótimas peças rendendo produções aquém de seu potencial (como Caminhos da Floresta), é sempre um alívio ver uma adaptação que consegue trazer o mesmo impacto do material de origem. Wicked é um musical repleto de emoção e encantamento que traz uma releitura inteligente de O Mágico de Oz ao lembrar do perigo da construção de um relato histórico sob uma única perspectiva.

 

Nota: 8/10


Trailer

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