segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Crítica – Ainda Estou Aqui

 

Análise Crítica – Ainda Estou Aqui

Review – Ainda Estou Aqui
O cinema brasileiro já produziu vários filmes sobre o período da ditadura militar, um período que nunca passamos realmente a limpo e cujas consequências da impunidade em relação aos envolvidos continua a impactar o presente do país. Ainda assim não esperava me impactar tanto por Ainda Estou Aqui do jeito que me impactei, principalmente pelo modo como o filme constrói a jornada de sua protagonista sem didatismos, sem discursos fáceis. A dureza dos seus dias e seus esforços para seguir adiante são o suficiente para comunicar a brutalidade daqueles tempos.

Luzes e sombras

A trama acompanha Eunice Paiva (Fernanda Torres), esposa do ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello). Quando Rubens é levado por homens do governo, Eunice busca descobrir o que aconteceu com o marido enquanto tenta manter sua casa funcionando e os cinco filhos em segurança.

É visível como a fotografia muda a partir do momento que os homens estranhos entram na residência dos Paiva e começam a fechar as cortinas. Até então a vida da família é permeada por luz. Uma iluminação cálida, cheia de fachos de luz e reflexos nas superfícies. Eles estão na praia, na rua e mesmo dentro de casa a iluminação traz um senso de espaços mais abertos, acolhedores, vividos, repletos de calor humano.

Depois que Rubens é levado tudo fica mais sombrio, com o uso maior de contrastes com sombras. Os espaços, inclusive os da casa, parecem menores, mais opressivos. A vida aberta, solar, da família se torna mais confinada. Suas perspectivas diminuem e a imagem reflete isso, inclusive com as cores ficando em uma saturação menor conforme o mundo de Eunice se torna mais frio e mais hostil.

O momento que melhor ilustra essas transformações na fotografia, para além da cena que os militares chegam na casa para levar Rubens, é quando Eunice vai pegar a filha mais velha, Vera (Valentina Herszage). Acompanhamos Eunice, Vera e os dois filhos mais novos voltando de carro para casa. O retorno da filha mais velha depois de um longo período no exterior é marcado pela luminosidade, o sol bate nos rostos de Eunice de Vera. A volta da filha é como um retorno ao momento anterior da família. Então Vera insiste em perguntar sobre o pai, Eunice sinaliza com a cabeça para os filhos menores do banco de trás, Vera insiste nas perguntas e logo o carro é tomado por sombra. Não parece ser acidental que a iluminação mude no exato instante em que a filha traz a mente de Eunice de volta para a realidade brutal da ausência não explicada de Rubens.

O som da opressão

A paisagem sonora também é usada para marcar a mudança do cotidiano da família. O primeiro som marcante é o ruído de um helicóptero voando. O ouvimos desde a primeira cena em que vemos Eunice nadando na praia. É um som que evoca a presença constante da vigilância militar, mas que nessa primeira cena não soa necessariamente como uma ameaça à protagonista, que segue no mar. Continuamos ouvindo o helicóptero enquanto acompanhamos o cotidiano da família e depois que Rubens é levado o som do helicóptero se torna mais intenso, Eunice chega a acordar assustada ao ouvi-lo no meio da noite, e toda vez que o ouvimos o clima passa a ser tomado por tensão, como se ele fosse um prenúncio da ameaça do governo ditatorial.

Quando Eunice é levada para interrogatório é o som que nos informa da brutalidade do lugar. Enquanto ela senta em uma sala escura ouvimos os gritos nos corredores, sons de golpes e de corpos sendo arrastados. Eunice olha de relance para o chão da sala e vê manchas de sangue. O filme nunca nos mostra explicitamente ninguém sendo torturado (nem lembro de muitas menções da palavra tortura), mas esses indícios de imagem e som nos dão a medida dos horrores que acontecem naquele quartel.

O filme usa muita música não original, privilegiando a música brasileira, mas também usando artistas internacionais com canções sempre muito conectadas àquele período, inclusive canções militantes contra o governo. Mesmo depois que a narrativa dá um salto de 25 anos no tempo a paisagem musical continua marcada por canções da década de 70, com uma presença grande de canções de Caetano Veloso (e isso me remeteu ao documentário Narciso em Férias, que narra o período que o cantor passou preso). Em algumas instâncias nesse segmento da década de noventa a música soa diegética, ouvida em cena pelos personagens, como que para marcar que o passado continua presente para eles, enquanto Eunice busca reconhecimento do governo pela morte do marido.

Não há noite que dure para sempre

Claro, todo esse cuidado técnico não teria como sustentar a produção se o elenco não conseguisse dar credibilidade à jornada emocional de seus personagens e Fernanda Torres é mais do que hábil em nos fazer entender como tudo aquilo afeta Eunice. É uma performance muito delicada, com gestos sutis e inflexões contidas que dizem muito a respeito do turbilhão interno da personagem e como ela, em muitos casos, evita externar plenamente como se sente, seja para não assustar os filhos ou para não demostrar seu medo e preocupação para os militares que passam a ocupar os arredores de sua casa.

Isso é visível no tremor nos lábios de Eunice quando Rubens vai embora. Ela sabe o que pode acontecer, mas como está cercada por militares e os filhos estão em casa, ela parece segurar ao limite seus sentimentos. Quando Eunice retorna para casa depois de vários dias na detenção o modo como ela esfrega o corpo no chuveiro, em movimentos intensos e repetidos é como se ela quisesse purgar do corpo (marcado de hematomas, revelando as torturas sofridas) a experiência que viveu, como se esperasse que água pudesse limpar tudo que lhe foi maculado. Quando é informada da morte de Rubens, a vemos começar a chorar, mas assim que a filha menor entra no cômodo com uma boneca quebrada, Torres faz um leve movimento com o rosto, contendo o choro e recuperando uma impressão mais estoica, para não ter que revelar o que aconteceu ainda que a filha pergunte se ela estava chorando.

Não significa, porém, que Eunice se contenha o tempo todo. O filme dá momentos para que a personagem extravase sua dor e compreensível raiva, como na cena em que o cachorro da família é morto e ela vai bater no vidro do carro dos militares que estão vigiando a casa, gritando com eles como se tivesse perdido seu medo e deixando vir à tona a frustração contida até então. O enterro do cachorro, inclusive, é um momento bem simbólico, como se naquele momento a família também enterrasse Rubens, algo que nunca puderam fazer.

A cena em que ela insiste em sorrir com a família durante uma foto para uma revista serve para que ela comunique a resistência dela e da família, que se recusam a projetar uma imagem de derrotados, preferindo mostrar que continuam a viver e continuam a resistir. É um lembrete de como diante da opressão a felicidade pode ser um ato político, de como a violência das estruturas de poder autoritárias são também projetadas para atacar os ânimos das pessoas e assim mantê-las dóceis. Nesse contexto, encontrar razões para continuar vivendo é encontrar meios para resistir.

O sorriso como um gesto de resiliência é reforçado no epílogo, quando encontramos uma Eunice já idosa, sendo interpretada por Fernanda Montenegro. Bastante debilitada pelo Alzheimer, Eunice não interage muito com o mundo ao seu redor, mas não deixa de sorrir quando é levada para tirar uma foto com o resto da família, agora muito maior do que na década de 70, a imagem dela idosa, ainda sorrindo, cercada por uma família que se multiplicou, ecoa a foto do passado, ilustrando a resistência, a permanência e o sucesso de Eunice e de sua família apesar de tudo que viveram.

Embora foque na jornada de Eunice, o filme nunca deixa de apontar o contexto maior de repressão que havia no período, mencionando diferentes ocorrências contemporâneas aos eventos da família Paiva e remetendo também a outras produções do cinema brasileiro a respeito desses temas. Os vários telejornais assistidos pela família mencionam o sequestro de diplomatas estrangeiros para barganhar a soltura de presos políticos, algo já retratado no cinema brasileiro em O Que é Isso Companheiro? (1997), que também contava com Fernanda Torres no elenco. A prisão e tortura de Eunice apenas por conhecer socialmente pessoas envolvidas com movimentos de esquerda dialoga com o que acontece com o protagonista de Pra Frente, Brasil (1982). Reportagens assistidas pelos personagens mencionam outros ativistas mortos ou desaparecidos pela ditadura como Stuart Angel, cuja luta da mãe dele para denunciar sua morte foi retratada em Zuzu Angel (2006). Os filhos pequenos de Eunice que navegam por aquele contexto brutal sem ter plena ideia da realidade dura que os cerca dialoga com o protagonista de O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006). Assim, por mais que mantenha seu escopo focado em uma experiência individual, a produção não perde de vista o contexto maior da opressão da ditadura.

A cartela de texto final nos lembra que nunca julgamos ou condenamos os militares responsáveis pela nossa ditadura e vemos ainda hoje as consequências dessa impunidade quando, mais uma vez, precisamos lidar com o golpismo vindo das forças armadas. A Argentina julgou e condenou seus militares, algo retratado no filme Argentina, 1985 (2022). Em seu argumento final, o promotor responsável pelo caso, Julio Strassera, falava da necessidade de construir uma paz fundada na justiça, não na violência, na memória e não no esquecimento. Ainda Estou Aqui serve como um lembrete da importância de preservarmos a memória do período da ditadura, contando sua história com contundência e sensibilidade.

No momento em que esse filme passa nos cinemas, vemos outra trama golpista vinda das casernas ser deslindada e a história nos dá uma nova possibilidade de contermos na justiça a conduta golpista do exército. A dor e horror retratados em Ainda Estou Aqui pontuam a importância de garantir que nada similar volte a acontecer em nosso país, então novamente cito as palavras de Strassera no julgamento que condenou os militares argentinos: “essa é a nossa oportunidade e, talvez, seja a última”. Que não a deixemos passar e que não permitamos que o passado se repita.

 

Nota: 10/10


Trailer

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