segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Crítica – Encontro com o Ditador

 

Análise Crítica – Encontro com o Ditador

Review – Encontro com o Ditador
O diretor cambojano Rithy Pahn, responsável pelo excelente A Imagem que Falta (2013), volta a tratar do período em que o Camboja esteve sob domínio do Khmer Vermelho neste Encontro com o Ditador, que se baseia levemente em uma história real de três jornalistas que foram ao Camboja entrevistar o ditador Pol Pot.

Jornalismo e poder

A narrativa é inspirada em um livro da jornalista de guerra Elizabeth Becker no qual ela narra suas experiências no Camboja e acompanha três fictícios jornalistas franceses que se baseiam em Becker e sua equipe. Lisa Delbo (Irene Jacob) é uma jornalista experiente que conhece o pensamento comunista revolucionário e sonda seus entrevistados com cuidado ao perceber as maneiras com as quais o regime de Pot contorce essas ideias para seus próprios fins. Alain (Gregóire Colin) é um comunista convicto, bastante familiar com o Camboja e que troca correspondência diretamente com Pol Pot e demonstra uma certa deferência para o grupo de seguranças armados que os acompanha durante a viagem e controla tudo que eles veem. O terceiro membro do grupo é o fotógrafo Paul (Cyril Guei), cuja obstinação jornalística em busca da verdade o faz constantemente correr riscos ao tentar escapar do controle de sua entourage estatal para tentar observar o que há por trás desse discurso.

Todo filmado em uma taxa de aspecto 4:3 que parece pensada para emular as filmagens que repórteres do período teriam feito, o filme reflete sobre o papel do jornalismo na sua relação com o poder constituído. É bem evidente desde o início que a viagem da equipe de Lisa é excessivamente guiada e cada pessoa colocada para ela entrevistar é escolhida a dedo para confirmar a mensagem do atual regime. Seguir sem questionar as visões apresentadas seria fazer assessoria de imprensa, não jornalismo, mas Lisa entende os riscos de tentar um questionamento mais duro e tenta caminhar com cuidado na corda bamba argumentativa que a situação a coloca, construindo perguntas que desafiam a visão daqueles indivíduos sem parecer que está em uma oposição direta.

O arco de Paul, por outro lado, mostra o que pode acontecer quando se desafia de maneira muito aberta e acintosa a vontade de um regime violento, rapidamente “desaparecendo” e sendo tratado como inimigo do estado sob a justificativa que se uniu a guerrilheiros que se opõem a regime. Alain, por sua vez, mostra que não existe distância segura de um governo autoritário, já que mesmo sendo íntimo do governante é possível ser alvo se disser a coisa errada. Mais que isso, Alain é um exemplo da importância de colocar as próprias convicções em xeque, nunca agindo com a certeza de compreender plenamente a situação.

Imagens faltantes

Como em A Imagem que Falta, Pahn constrói varias cenas a partir de imagens de maquetes e bonecos, como que para lembrar a natureza fabular daquilo que vemos, já que não se trata de uma reconstrução precisa de memórias, além de servir como uma reconstrução de momentos que não teriam ou que seriam apagados do registro oficial, como os eventos envolvendo Paul na mata. As maquetes são usadas em outros momentos para mostrar como o regime está disposto a reconstruir a história do país, como no instante em que os personagens ouvem sobre a iniciativa de substituir estátuas religiosas antigas por imagens de Pol Pot, nesse momento as maquetes entram para mostrar a fachada daquela maneira de representar a história do país.

Há também a escolha por colocar os atores diante de fundos com imagens de arquivo, fundindo ficção e realidade em uma única imagem, reforçando que por mais que estejamos diante de uma encenação, o filme está reconstruindo a memória de eventos reais. O uso de imagem de arquivo parece também estar conectado aos momentos em que os personagens usam suas câmeras em segredo, como se esse registro dissolvesse a imagem encenada que o regime tenta construir diante deles e revela a realidade que há por trás dela.

Nesse fluxo de construção e substituição de imagens, é curioso que o filme nunca nos mostre de fato Pol Pot apesar dele estar em cena conversando com os protagonistas. Ouvimos sua voz, mas não vemos seu rosto. Sua presença é sentida, mas ele não se torna um indivíduo. É quase como se ele fosse uma entidade, uma ideia, pairando sobre os personagens, impondo sua vontade, vigiando-os (inclusive por conta das várias pinturas com seu rosto que aparecem ao longo da trama). Não importa ao filme mostrar o rosto do ditador, importa refletir o que ele e o processo de violência que pessoas como ele representam. Esse senso de pavor constante é também desenvolvido pela trilha musical cheia de sibilos sinistros em meio a uma paisagem sonora que constantemente recorre a distantes ruídos ambientes para ressaltar o vazio e isolamento dos personagens.

Mostrando a implacabilidade de estruturas de opressão, Encontro com o Ditador reflete sobre a reescrita da história por esse tipo de regime e os desafios de manter a integridade jornalística em um ambiente de verdade falseada.

 

Nota: 8/10


Trailer

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