terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Crítica – O Jogo da Rainha

 

Análise Crítica – O Jogo da Rainha

Review – O Jogo da Rainha
O cinema de Karim Ainouz constantemente dialoga com noções de masculinidade, analisando os problemas e tensões de certas convenções a respeito do que é “ser homem”. Fez isso em filmes como Motel Destino (2024), Praia do Futuro (2014) ou Madame Satã (2002). Neste O Jogo da Rainha ele deixa o contexto brasileiro para ir à Europa do século XVI para construir uma história sobre patriarcado, masculinidade e a resiliência feminina diante de um mundo dominado por homens, algo que ele já fez em A Vida Invisível (2019).

Mundo masculino

A trama se baseia na história real de Catarina Parr (Alicia Vikander), sexta esposa do rei Henrique VIII (Jude Law). Enquanto o marido está fora em guerra, Catarina é nomeada regente e conforme adquire poder vai se tornando uma liderança em uma revolução protestante que via colocar a igreja acima do rei. Quando o monarca retorna da guerra, marcado por ferimentos e infecções, além de problemas com gota, ele não apenas remove o poder de Catarina, reduzindo sua regência a tarefas mínimas. Henrique também se torna mais agressivo e paranoico conforme seu estado de saúde piora e Catarina passa a temer por seu destino.

Alicia Vikander faz de Catarina uma mulher resoluta e convicta de seus ideais, mas contida no modo como os expressa por saber os perigos que suas convicções e sua pessoa posam naquele meio dominado por homens. Ela aguenta as humilhações e indiretas suspeitas do marido com um estoicismo silencioso enquanto age nos bastidores para tentar evitar o mesmo destino de outras esposas do monarca. Vikander entrega uma performance minimalista, com muitos momentos de silêncio e cujas expressões são sempre contidas, como se ele medisse cada ação, cada gesto, revelando como se sente através do olhar e de sutis inflexões de voz. É um trabalho que lembra bastante a performance dela no excelente Ex Machina (2014), no qual também fazia uma personagem que usava da dissimulação como tática de sobrevivência.

Jude Law faz de Henrique VIII uma presença assustadora. Muito disso vem da caracterização, com uma forma corpulenta, pernas inchadas por conta da gota, feridas infestadas de pus que recorrentemente jorram sangue e secreção. A podridão do personagem não é apenas externa, mas interna, conforme ele é tomado pela paranoia de que Catarina estaria fomentando uma revolução, mandando-a várias vezes calar a boca ou espumando de raiva enquanto lembra a esposa o destino sangrento de suas cônjuges anteriores. Law transita entre a fragilidade da doença e a fúria paranoica tornando o monarca uma figura imprevisível e construindo um palpável senso de ameaça em relação a Catarina. Por outro lado, Law deixa visível que, ao seu modo, Henrique VIII ama a esposa e tem certo temor de precisar eliminá-la como fez com as outras.

Law e Vikander protagonizam algumas das cenas de sexo mais propositalmente desagradáveis do cinema recente conforme Henrique sobe na esposa arfando de maneira agressiva e desajeitada como um suíno asmático. A câmera de Ainouz torna o momento ainda mais desconfortável ao se posicionar atrás do monarca, nos mostrando seu traseiro gordo cheio de perebas chacoalhando enquanto ele tenta penetrar a esposa.

Intriga palaciana

As suspeitas de Henrique VIII são alimentadas por membros de sua corte que veem os pensamentos reformistas como uma ameaça aos poderes consolidados, mostrando como a cumplicidade masculina opera para tentar silenciar qualquer mulher que ouse pensar de demais (não à toa Henrique várias vezes diz de modo condescendente para a esposa não “preocupar sua cabecinha”) ou questionar a estrutura social vigente. Nesse sentido, a trama progride como um jogo de gato e rato entre Catarina e aqueles que tentam criminalizá-la como uma traidora.

Não que este seja o tipo de intriga palaciana cheio de suspense e com reviravoltas constantes. O ritmo aqui é mais deliberado, mais sutil, sem grandes gestos, com a manipulação ocorrendo em meio a conversas casuais durante festas, comentários que parecem jocosos, mas são carregados de malícia ou sussurros entre os corredores. O filme toma liberdades com o relato histórico e entra em um domínio de possibilidades especulativas que fazem sentido dentro da lógica protofeminista em que a trama tenta posicionar Catarina, com um desfecho que nos dá a devida catarse pela reação dela diante do marido e um plano final da princesa Elizabeth (Junia Rees) que pondera como a resistência contida de Catherine pavimentou o caminho para que a princesa assumisse como monarca (ainda que o trono tenha sido ocupado por duas outras pessoas após a morte de Henrique VIII até Elizabeth assumir). É um lembrete que a ação feminina para romper a estrutura patriarcal não é uma luta que mira apenas no presente, mas no futuro.

O Jogo da Rainha consegue desenvolver sua mensagem sem cair em didatismos, analisando os perigos do mundo masculino em que sua protagonista se insere através de um olhar cuidadoso e das nuances das performances de Alicia Vikander e Jude Law.

 

Nota: 8/10


Trailer

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