terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Crítica – Senna

 

Análise Crítica – Senna

Review – Senna
Considerando o quanto Ayrton Senna é importante para o esporte brasileiro e os vários documentários feitos sobre ele é até estranho que tenham demorado tanto para fazer uma ficção. A minissérie Senna é exatamente isso, tentando condensar toda a trajetória do piloto em seis episódios, acompanhando desde seu início na Formula Ford, até seu dia derradeiro na Formula 1, quando faleceu em um acidente.

Vida veloz

A série sofre por tentar compreender um período de tempo muito longo em uma quantidade pequena de episódios e com isso passa muito rápido pelos eventos marcantes da vida de Senna sem dar o devido tempo para analisar como essas experiências impactaram sua trajetória. Talvez tivesse sido melhor se a produção fosse pensada como uma série de duas ou três temporadas. Do jeito que está fica a impressão de uma história compostos por verbetes soltos de Wikipedia que se limitam apenas a narrar os feitos mais notáveis do personagem sem buscar alguma compreensão deles.

Um episódio, por exemplo, termina com Senna (Gabriel Leone em sua segunda incursão no universo do automobilismo depois de Ferrari) atacando a direção da FIA depois de receber uma punição que considera injusta. Imaginamos que isso terá consequências, mas o episódio seguinte começa com a McLaren anunciando Senna como seu principal piloto e entregando ao dirigente da federação uma carta em que o piloto se recusa a se desculpar. Imaginamos que isso será um problema, mas não, ele é admitido na nova temporada sem problemas e a única consequência é o chefe da FIA dizer à imprensa que Senna se desculpou, o que está longe de ser uma repercussão significativa.

Além da rapidez com a qual se move pela vida de seu personagem, a série sofre com o olhar simplista que tem sobre ele. A narrativa já parte da ideia de que Ayrton Senna é um herói e, como tal, é alguém que está sempre do lado certo e cuja moral elevada o autoriza a fazer qualquer coisa porque, bem, porque ele é um herói e se um herói faz algo é automaticamente pelo bem. Com isso, tudo que dá certo para o personagem é sempre mérito de seu talento, habilidade e perseverança, mas tudo que dá errado para Senna nunca é uma falha (moral ou de ação) dele, sempre são os outros.

Retrato simplório

O personagem nunca perde uma corrida porque estava distraído ou cometeu um erro, se ele perde é porque alguém trapaceou usando brechas no regulamento ou porque seu carro não estava seguindo suas especificações. Quando ele bate em um rival ao tentar uma ultrapassagem arriscada, a trama não enquadra essa ação como algo inconsequente da parte de Senna ou que ele talvez (só de levantar a possibilidade já seria melhor que nada) ele seja meio babaca ao estar disposto a arriscar a vida dos outros para vencer. Sim, a direção da FIA age como um bando de europeus elitistas que menospreza Senna em parte por ele não ser europeu, mas o fato deles serem escrotos não torna Senna automaticamente correto do ponto de vista moral, é perfeitamente possível que todos sejam, em maior ou menor grau, babacas e a série prefere investir em maniqueísmos simplórios do que dar qualquer nuance ao seu protagonista.

As coisas pioram na exploração da vida pessoal de Senna e seus relacionamentos fracassados. Mais uma vez os términos nunca são culpa dele e a trama joga a responsabilidade em suas companheiras. No primeiro episódio vemos o fim do casamento dele com Lilian (Alice Wegman), que decide se separar depois que Senna decide voltar a morar na Europa e Lilian diz que não quer voltar para lá. No episódio vemos Lilian dizer como não se adaptou à vida na Inglaterra, mas a narrativa não constrói isso em cena. Não vemos o senso de solidão e vazio que a personagem provavelmente experimentou na vida isolada na Europa enquanto o marido estava ocupado e porque isso não é desenvolvido a escolha de Lilian soa mais como um capricho de uma dondoca dando ao marido um ultimato para conseguir o que quer do que uma decisão dolorida. Isso faz parecer que o fim do casamento é culpa exclusivamente dela.

Do mesmo modo, ao retratar o namoro entre Senna e Xuxa (Pamela Tomé). A série faz parecer que o fim da relação aconteceu exclusivamente por decisão dela. Na cena que precede o término, inclusive, vemos um diálogo entre Xuxa e alguém que parece ser sua empresária (provavelmente por razões jurídicas ela não se parece nem um pouco com Marlene Mattos) que aconselha Xuxa a terminar o relacionamento porque o tempo que ela gasta indo ver Senna na Europa a faz perder compromissos profissionais. Assim, quando Xuxa termina com ele logo depois a série faz parecer que ela foi convencida a fazer isso e durante todo o diálogo Senna insiste que podem fazer a relação dar certo, disposto a continuar, mas Xuxa é irredutível. Mais uma vez a série exime o protagonista de qualquer responsabilidade pelo relacionamento não ter dado certo, ignorando o quanto a ausência dele em momentos importantes da vida da namorada (a série mostra que ela ia até ele o tempo todo, mas ele não ia até ela) pode ter contribuído para a relação não ter dado certo.

Na série, Senna é perfeito, ele não erra, ele não tem falhas e isso o torna um personagem entediante. É como se os realizadores achassem que dar ao personagem diferentes facetas iria arranhar ou causar dano a sua imagem ao invés de torná-lo mais humano, mais complexo, alguém com quem pudéssemos nos relacionar ao invés desse retrato tão mitificado que soa quase infantil.

O dia derradeiro

É só no último episódio que a série tenta dar alguma nuance aos seus personagens. Acompanhando os últimos dias de Senna antes de sua morte no GP da Itália em 1994, vemos um Senna que não é só focado em vencer (até então ele é um Speed Racer da vida real), mas alguém que se preocupa com os colegas pilotos e a segurança do esporte (uma preocupação que a série até então não tinha apresentado). Se Alain Proust (Matt Mella) até então era o clichê do vilão europeu esnobe, no último episódio vemos uma conversa entre ele e Senna que mostra como havia um respeito mútuo entre eles e que há um misto de amizade e rivalidade entre os dois ao invés da constante animosidade de episódios anteriores.

É uma pena que esse cuidado na construção dos personagens não esteja presente no restante da série, porque o episódio dá um vislumbre de como tudo poderia ter sido bem mais interessante sem o maniqueísmo rasteiro que a narrativa vinha apresentando. O desfecho  mostra o descaso da FIA com a segurança das pistas, precisando alguém como Senna morrer na pista para que atitudes fossem tomadas (e olha que a série nem menciona que os dirigentes mentiram ao dizer que Senna saiu vivo na ambulância para evitarem que as autoridades investigassem sua morte no local na prova). Mais que isso, porém, encerra com sua celebração afetuosa do legado de Senna para o esporte e para a memória da população brasileira.

O rei da chuva

O mérito principal da série é justamente o de retratar o que fazia de Senna um piloto tão especial, mostrando sua constante atenção aos detalhes (das pistas e dos carros), sua técnica em conduzir por situações perigosas, principalmente na chuva e como suas vitórias mobilizavam o Brasil. As cenas de corrida são bem executadas, transmitindo o senso de velocidade e de perigo do automobilismo de décadas atrás no qual qualquer erro faria o carro se arrebentar na pista.

A série é hábil em resgatar os feitos de Senna e porque mesmo hoje ele é lembrado e idolatrado até por quem é jovem demais para tê-lo visto correr. Mesmo quem não entende nada de automobilismo vai ser capaz de entender o que fazia de Senna alguém tão diferenciado através do discurso da série. A produção, nesse sentido, é bem sucedida em manter vivo na memória o legado de seu biografado, ainda que seja prejudicada por várias decisões questionáveis de como construir essa narrativa.

Para além do olhar unidimensional sobre Senna, é estranha também a decisão de à série uma co-protagonista na repórter vivida por Kaya Scodelario. Personagem completamente ficcional, a trajetória da repórter percorre a série em paralelo à Senna, sendo que não há nada de muito interessante em sua trama pessoal envolvendo sua carreira ou a relação distante que tem com a filha. No fim a personagem fica como um descartável veículo de diálogos expositivos sobre como a imprensa via o piloto. Se a ideia era ilustrar esses embates com a imprensa, porque não usar Galvão Bueno (Gabriel Louchard), alguém que existiu e foi de fato amigo pessoal do piloto para inserir essas conversar de maneira mais orgânica na narrativa ao invés de criar uma co-protagonista que não acrescenta muita coisa?

Mais hagiografia do que biografia, Senna faz uma justa celebração de seu protagonista, mas derrapa em um olhar raso e unidimensional.

 

Nota: 5/10


Trailer


Nenhum comentário: