terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Crítica – Emilia Pérez

 

Análise Crítica – Emilia Pérez

Review – Emilia Pérez
A sensação de assistir Emilia Pérez é que o diretor francês Jacques Audiard, responsável pelo ótimo Ferrugem e Osso (2012), tentou fazer um filme do Almodóvar, mas sem a sensibilidade e curiosidade que o realizador espanhol tem pelos temas e personagens complicados que trata. O resultado é um filme que tinha muito potencial ao contar a história de um chefe do narcotráfico que reconstrói a vida ao realizar uma transição de gênero, mas fica na superfície por conta de um olhar distanciado e escolhas problemáticas.

Identidade em transição

A narrativa acompanha a advogada Rita (Zoe Saldaña) que é contratada pelo traficante Manitas (Karla Sofia Gascon) para tirá-lo do país em segredo para que ele faça uma cirurgia de transição de gênero e assuma uma nova identidade. Depois de quatro anos e vivendo como Emilia Pérez, ela volta a contatar Rita para que a advogada a ajude em outras questões e juntas elas iniciam uma organização filantrópica.

O filme tenta falar de muita coisa ao mesmo tempo, de pessoas transgênero a violência urbana, corrupção, narcotráfico e não faz nada muito bem. Os temas são tratados através de frases de efeito rápidas que comunicam a existência desses problemas sociais, como o discurso sobre as vítimas desaparecidas do narcotráfico, mas que não fazer qualquer esforço de entender o que está em jogo em cada um desses contextos, o que motiva essas pessoas ou os elementos que causam essas circunstâncias. Com isso, a trama não passa de um encadeamento de cenas e eventos que não tem praticamente nada a dizer sobre os temas que ambiciona abordar.

A produção inclusive faz escolhas problemáticas em termo de representação de pessoas transgênero, com Emilia retornando à sua voz de Manitas toda vez que está com raiva, como se ela precisasse retornar a um estado “masculino” para demonstrar essa emoção ou como se toda sua conduta anterior fosse apenas uma performance, um fingimento e ela estivesse usando a transição só para fugir de sua vida como traficante. Assim, o filme recorrentemente reduz discussões complexas sobre gênero e identidade a binarismos tolos, cheios de generalizações infundadas sobre o que seriam coisas “de homem” (Manitas chega a dizer que se não tivesse nascido homem não teria enveredado por um caminho de violência) e coisas “de mulher”.

A mudança de voz nesses momentos sequer faz sentido dentro do contexto da narrativa, já que a vemos quatro anos depois da transição e a essa altura, com cirurgias e terapias hormonais que provavelmente nem deixariam possível que ela conseguisse falar com sua voz anterior à transição. Igualmente não faz sentido que os filhos de Emilia, que nasceram antes de sua transição, reconheçam nela o cheiro de Manitas como se ela não tivesse passado por anos de terapia hormonal. Se o texto queria fazer os garotos a reconhecerem, porque não colocá-los para identificar um sinal ou marca de nascença no corpo dela?

Personagens distantes

Essa ausência de interesse nos personagens se reflete também em Rita e em Jessi (Selena Gomez), esposa de Manitas e que vai viver com Emilia achando que ela é uma tia distante do marido que crê estar morto. O início do filme nos mostra Rita insatisfeita com seu trabalho em uma grande firma, fazendo todo o trabalho pesado dos processos enquanto seus chefes colhem os louros e incomodada por defender clientes horríveis como um feminicida. Ela vê a proposta a proposta inicial de ajudar Emilia em sua transição como uma chance de criar seu próprio escritório, mas daí em diante passa o resto do filme simplesmente gravitando em torno de Emilia, mesmo quando ela faz coisas questionáveis. Rita não tem qualquer arco próprio, vontade ou qualquer outra coisa, ela passa o resto do filme praticamente como uma capanga de Emilia e o filme nunca põe isso em questão.

Ao menos Zoe Saldaña é convincente em nos mostrar a insatisfação de Rita com sua vida no começo de filme, tornando crível o motivo dela aceitar o trabalho, e caminha bem através da obstinação da advogada, dando ela alguma ancoragem emocional mesmo com um material com tão pouca substância. O mesmo não pode ser dito de Selena Gomez como Jessi. Sem fluência em espanhol, Gomez passa boa parte do tempo em cena declamando suas falas de maneira mecânica, sem conseguir evocar qualquer sentimento através dos diálogos.

Claro, a culpa da personagem ser ruim não recai só na performance da atriz, mas também em um texto que apenas nos informa como ela se sentia em seu casamento com Manitas e sua atual situação como “hóspede” de Emilia sem nos fazer sentir o devido peso emocional disso tudo e como é para ela ser uma refém numa gaiola de ouro, como ela mesma diz. Como essas dores e frustrações de Jessi não são bem construídas, isso faz a decisão final dela de uma escalada violenta soar até absurda. As ações de Jessi no clímax também soam como uma reprodução de clichês preconceituosos sobre os mexicanos, como se fossem pessoas instáveis e perigosas com uma inclinação natural para recorrer ao crime e à violência.

Musical sem ritmo

Até agora não mencionei outro grande problema do filme: as canções. Sim, é um filme musical e isso, por si só, não seria um problema. Pessoalmente adoro musicais, já realizei pesquisas acadêmicas sobre cinema musical ao redor do mundo, tenho trabalhos publicados sobre isso em periódicos de universidades do Brasil e de fora. Digo tudo isso para dizer que me sinto muito confortável para dizer que Emilia Perez tem as piores canções que já ouvi em um filme musical.

Todas as canções soam estranhas na métrica e no ritmo dos versos, como se estivesse faltando alguma coisa ou como se não encaixassem nas melodias. A impressão é que não foram compostas para a cadência do espanhol e distante de ritmos ou musicalidades mexicanas que fariam sentido para o canto de personagens nascidos no país. Não foi surpresa alguma descobrir que todas as canções foram compostas por uma dupla francesa. Tentei pesquisar sobre o processo de composição musical do filme e não encontrei muita coisa, mas eu não descartaria que a dupla não é muito familiar com a língua espanhola e provavelmente não tiveram nenhum consultor ou colaborador que fosse. Tampouco me surpreenderia se as letras tivessem sido primeiro compostas em francês e depois traduzidas sem a devida localização, o que explicaria muito do fluxo esquisito das canções.

Em alguns casos as letras e melodias são simplesmente constrangedoras, como o número sobre cirurgias de mudança de sexo cujas palavras parecem ter sido escritas por uma criança que ouviu pela primeira a respeito desse tipo de cirurgia. É uma canção extremamente constrangedora, mas Audiard a conduz com a certeza de que está fazendo algo bastante moderno e quebrador de tabus. Talvez se houvesse algum senso de autoironia ou consciência do ridículo da canção, como se ela transmitisse a ignorância de Rita sobre o assunto, talvez pudesse até funcionar.

As coreografias são as únicas coisas que funcionam nos números musicais, com um grande número de dançarinos e movimentos em fractais que remetem aos filmes coreografados por Busby Berkeley na era ouro de Hollywood. Ainda assim, as danças não são o suficiente para dotar os números musicais de qualquer grau de encantamento.

É uma pena, já que a premissa do filme poderia render um musical muito bom, mas o resultado final de Emilia Perez é tão cheio de certezas e tão pouco interessado em destrinchar os temas e conflitos de seus personagens que o resultado é vazio e condescendente.

 

Nota: 3/10


Trailer

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