Mão de obra descartável
A narrativa acompanha Mickey (Robert Pattinson), um trabalhador a bordo da espaçonave destinada a colonizar o remoto planeta gelado Niflheim. Mickey, porém difere de outros trabalhadores do local por um Descartável. Sua função é realizar trabalhos com claro risco de morte porque se ele morrer pode ser clonado novamente carregando as mesmas memórias de seu antecessor. Depois de sobreviver a uma queda que o mataria, Mickey retorna ao seu quarto para descobrir que um novo Mickey foi feito por acreditarem que ele estaria morto.
É bem evidente que toda a ideia de alguém literalmente enviado para morrer sendo copiado indiscriminadamente tratado como uma cobaia humana para testar armas químicas ou enviado para ambientes em que ninguém seria capaz de sobreviver. O fato de Mickey ser um Descartável faz dele alguém inferior socialmente, com boa parte dos outros membros da colônia tratando ele mais como uma coisa do que como uma pessoa, revelando uma visão desumanizada e utilitarista do trabalhador como uma ferramenta.
Do mesmo modo, toda a construção do universo da trama dialoga com o contexto contemporâneo. Nosso planeta foi tomado por transformações causadas pelo clima e ao invés de tentar melhorar as condições de vida das pessoas grandes empresas e bilionários simplesmente resolvem partir para colonizar outros mundos enquanto quem fica vive cada vez pior.
Não que a vida seja melhor nas colônias, que exibem desigualdades ainda mais severas. Lá os líderes, o político reacionário Marshall (Mark Ruffalo) e sua esposa Ylfa (Toni Collette), vivem em acomodações suntuosas, tendo acesso a todo tipo de comida enquanto os trabalhadores vivem à míngua se alimentando de um chorume sintético e até isso é controlado pelo casal que governa a colônia, que impõe restrições como proibir as pessoas de fazerem sexo para economizar nutrientes. É algo semelhante ao que o próprio Bong Joon Ho fez em Expresso do Amanhã (2015).
Se tudo parece muito absurdo ou distante, basta lembrar que dos vários bilionários em nosso mundo que querem empreender o mesmo tipo de jornada de colonização a outros planetas quando seus recursos poderiam muito bem resolver problemas como a fome ou o desenvolvimento de tecnologias renováveis.
Assim como no filme os bilionários preferem mirar suas intenções em novos mundos porque, bem, porque preferem manter as coisas como estão e manter a população ainda mais precarizada desde que possam manter seu conforto. A distopia que o filme aponta não é algo que poderá acontecer em um futuro distante, é algo que já está em marcha hoje pelas mãos de bilionários e governos plutocráticos que ampliam a concentração de riqueza nas mãos de poucos e adotam políticas que visam manter o estado das coisas ou reconstruir a mesma sociedade desigual em outro planeta ao invés de tentar mudar as coisas aqui.
Identidade e alteridade
A situação de Mickey enquanto Descartável também pondera sobre a alienação do trabalhador, que praticamente não tem espaço para mais nada em sua vida além de viver e morrer pela empresa, perdendo o senso de identidade, capacidade de criar laços afetivos e outras coisas necessárias para uma vida saudável tudo em troca de uma ocupação que não lhe dá o mínimo nem mesmo de alimentação. O contato com outra versão de si permite a Mickey perceber outras facetas de sua personalidade que sua existência não lhe dava espaço para acessar.
Apesar dele ser o único Descartável, os demais trabalhadores são igualmente precarizados, precisando recorrer ao uso de drogas para lidar com o cotidiano hostil de pouca alimentação e praticamente nenhuma qualidade de vida. Mickey ao menos forja uma conexão afetiva com a oficial de segurança Nasha (Naomi Ackie), violando inclusive a proibição de não fazer sexo. Talvez seja justamente por essa conexão que Mickey consegue perceber que as criaturas rastejantes que habitam Niflheim sejam mais do que invertebrados irracionais.
O desenho de produção ressalta a vida precária dos trabalhadores com ambientes escuros e cinzentos, corredores apertados e apartamentos sem janelas. Esses espaços funcionam em oposição ao do casal de governantes, mais amplos, mais iluminados e cheios de objetos de luxo de decoração. Toda vez que um novo Mickey é “impresso” seu corpo muitas vezes trava ou fica indo e voltando na esteira como se ele estivesse saindo de uma velha impressora matricial.
O eventual conflito com as criaturas serve para pensar tanto a respeito da violência do processo de colonização, no qual ao longo da história humana espécies nativas são dizimadas por colonizadores. Temas de intolerância e racismo também se conectam com essas ideias, conforme os governantes da colônia se recusam a aceitar evidências de que as criaturas são seres dotados de inteligência e de pensamento sofisticado. O fato deles terem a aparência de criaturas invertebradas acaba sendo uma metáfora visual pouco sutil, já que lideranças supremacistas muitas vezes se referem a minorias ou grupos que veem como inferiores como vermes. Na verdade, muitos dos simbolismos do filme acabam sendo meio que óbvios demais, mas penso que muito desse problema é mais da realidade em si, com lideranças políticas bizarras que se comportam como vilões do 007 de Roger Moore, do que apenas do filme, que não tinha como saber o contexto atual (a menção que Marshall perdeu duas eleições parecia supor que Trump perderia a mais recente eleição).
Falando em líderes, se esse filme tivesse sido lançado a uma década atrás eu diria que os vilões vividos por Mark Ruffalo e Toni Collette pendem muito para uma caricatura grosseira de políticos religiosos e reacionário, mas levando em conta a ascensão de tantas figuras bizarras ao poder ao redor do mundo nos últimos anos, são personagens que soam plausíveis. O personagem Ruffalo parece pegar inspiração diretamente em Donald Trump, desde sua cadência de fala, passando por suas escolhas de linguagem (tudo é sempre o melhor do mundo) e até no bronzeado alaranjado.
Mickey 17 é uma inventiva ficção científica que usa seu cenário
distópico para refletir sobre as desigualdades sociais e precarização do
trabalho.
Nota: 8/10
Trailer
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