segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Crítica – Trilha Sonora para um Golpe de Estado

 

Análise Crítica – Trilha Sonora para um Golpe de Estado

Review – Trilha Sonora para um Golpe de Estado
Qual a relação entre músicos de jazz dos Estados Unidos, processos de independência na África e um golpe de estado no Congo durante a década de sessenta? Se esses elementos soam desconectados, o documentário Trilha Sonora Para um Golpe de Estado vai mostrar de maneira contundente como eles estão interligados.

Colonialismo e neocolonialismo

O documentário parte de excursões feitas por Louis Armstrong e sua banda a diversos países africanos ao longo das décadas de 1950 e 1960. Nomeado “embaixador do jazz” essas viagens eram promovidas por fundações culturais focadas da promoção da cultura negra nos EUA e estabelecer diálogos com os países africanos. O que Armstrong e outros músicos como Nina Simone ou Duke Ellington não sabiam é que essas instituições eram fachada da CIA, a agência de inteligência do governo dos EUA.

A agência usava essas viagens como uma forma de entrar no país, coletar inteligência e fazer alianças com lideranças internas de modo que quando um país se tornasse independente ele estivesse alinhado com os interesses dos Estados Unidos e não da União Soviética. É como se isso fosse uma maneira indireta para que uma potência global continuasse no controle desses países recém libertos da ocupação colonial através da penetração de sua cultura e, claro, do financiamento de lideranças políticas alinhadas. Assim, por mais que esses países tenham se livrado da estrutura colonialista típica, eles agora estão submetidos a um neocolonialismo que opera de maneiras bem menos explícitas, o que torna tudo mais difícil de combater.

Nesse sentido o filme também reflete o papel da ONU nesses conflitos e como ela serviu mais como um instrumento da manutenção do poder estabelecido do que como um instrumento de mediação para dar voz a todos. O documentário narra como a união de países africanos e asiáticos logo mudou a dinâmica de poder na instituição, com essas nações sendo mais numerosas e se juntando nas votações para conseguir o que queriam, estimulando os EUA e países europeus a ampliar sua intervenção nesses locais para manter seus interesses.

O som da revolução

Ainda que não tivessem ciência de que estavam sendo usados como instrumento de propaganda pelo seu governo, músicos como Armstrong ou Dizzy Gillespie demonstravam um interesse genuíno em estabelecer diálogos culturais e políticos com os países africanos, afinal o jazz é um ritmo que nasce da cultura afrodiaspórica e muitos desses músicos já eram engajados com o movimento negro dos Estados Unidos e com lideranças como Malcolm X.

Assim, esses músicos estabelecem uma franca colaboração com os músicos e intelectuais africanos, criando um trânsito de ideias e ritmos que impactou a cultura desses países e até mesmo os movimentos revolucionários deles, com Armstrong influenciando uma composição que foi muito importante para o movimento de independência do Congo. Seria fácil tratar a presença desses músicos como um mero esforço de propaganda estadunidense, mas o filme entende a complexidade da situação e percebe como a presença dos artistas rendeu resultados que foram muito além das intenções iniciais de governos dos EUA ou da Bélgica, outra grande interessada em manter o controle sobre o Congo.

O ritmo da História

A história é contada com uma ampla pesquisa arquivística que reúne imagens dos shows realizados na África, de reuniões da ONU, de entrevistas com autoridades como lideranças de agências de inteligência dos Estados Unidos ou da Inglaterra, gravações de voz do líder soviético Nikita Khruschev, reportagens de época e tantos outros materiais. O mais interessante, no entanto, não são os recursos em si e mais como o filme maneja esses elementos.

A impressão é que trama é contada como um grande fluxo de consciência, indo e voltando no tempo, introduzindo personagens que só serão proeminentes bem depois, contrapondo imagens de arquivo e declarações públicas com canções que servem como comentário ou oposição ao que as imagens mostram. É como se o filme visse a construção do relato histórico como um grande número de jazz, com diferentes instrumentos entrando e fazendo seus solos, complementando o ritmo geral ou oferecendo contraponto a ele criando um fluxo narrativo bastante singular no qual o próprio desenrolar da história se conecta com a lógica rítmica do jazz. É uma fusão entre música, arquivo, montagem e comentário político que lembra muito produções da década de 60 como o curta Now! (1965) do diretor cubano Santiago Alvarez.

Se realizadores como Alvarez partiam de um olhar de um habitante de um país do sul global para construir essas críticas, aqui temos um diretor belga, Johan Grimonprez, que critica de maneira contundente o papel e responsabilidade de seu próprio país na violência e instabilidade do Congo.

Elucidativo sem cair no didatismo, Trilha Sonora Para um Golpe de Estado se apoia em uma extensa pesquisa e em uma enérgica estrutura de montagem para revelar a responsabilidade das potências globais no subdesenvolvimento de países africanos, demonstrando como fim da ocupação colonial não encerrou o controle desses países sobre as nações africanas.

 

Nota: 9/10


Trailer

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