Paraíso perdido
O agente Xavier Collins (Sterling K. Brown) está há anos cuidando da segurança do presidente Cal Bradford (James Marsden) quando ele é assassinado. Xavier guardava um rancor do presidente por algo do passado, mas ainda assim precisa desvendar o crime. Anos atrás, ao proteger o presidente de um atentado, Xavier ganhou a confiança do presidente e se tornou um dos poucos a saber de uma catástrofe iminente que poderia destruir o planeta.
Conforme o primeiro episódio transcorre e Xavier encontra pistas deixadas pelo presidente, imaginamos que a morte dele tem a ver com as informações dessa catástrofe. No final do episódio, no entanto, vemos que Xavier não está em Washington e sim em uma estranha pequena cidade até que a trama nos deixa perceber que toda a cidade é um grande bunker subterrâneo e que a catástrofe que destruiria o planeta já aconteceu. Aquele bunker é talvez tudo que tenha restado da humanidade. Assim, além do mistério do assassinato do presidente, a audiência também fica com o mistério do que aconteceu com o planeta.
Quando escrevi sobre o recente Mickey 17 (2025), mencionei que distopias não são sobre o futuro e sim sobre o hoje, sobre coisas que já acontecem no nosso mundo. Isso se aplica também a Paradise que, inclusive, guarda semelhanças com Mickey 17 no se refere ao seus temas, já que ambos são distopias sobre o que acontece quando bilionários resolvem reconstruir a sociedade.
Apesar de ter o presidente dos Estados Unidos, o lugar é controlado por um conselho, quase como uma empresa, e a frente desse conselho está a bilionária Samantha (Julianne Nicholson), que recebeu o codinome Sinatra do serviço secreto por ser ela quem lidera a banda, como Frank Sinatra. É uma sociedade que não tem um governo, tem uma CEO, uma executiva, alguém que comanda não pensando no coletivo, mas pensando no que é mais vantajoso para o comitê gestor.
Tudo precisa mudar para continuar igual
É uma reflexão sobre o totalitarismo corporativo e como deixar que bilionários controlem governos, ajam como CEO de países ou tentem colonizar outros planetas ou o fundo do mar pode ser desastroso. A série reflete como esse desejo de bilionários no mundo real em migrar para outros planetas ou criar seus próprios países não vem de uma benevolência, afinal, como Sinatra na série, eles poderiam usar seus recursos para melhorar o mundo agora, combater a fome, financiar pesquisas para erradicar doenças, mas ao invés disso preferem criar “novas” sociedades. Coloco aspas porque apesar de ter a chance de repensar a dinâmica da sociedade e criar algo menos desigual, o que vemos na série e nas propostas de ricaços do mundo real é simplesmente recriar a mesma lógica ou até exacerbar essas desigualdades ainda mais.
O motivo é que apesar de todo o discurso “disruptivo” e de rupturas institucionais o que essas pessoas querem é manter exatamente as coisas como estão, mantendo seus privilégios e a desigualdade do mundo ao invés de distribuir seus recursos para resolver problemas. Ainda que diga agir pensando no melhor para a humanidade, Sinatra age pensando no que é melhor para si mesma e sua filha, cometendo atos monstruosos para manter as coisas exatamente como estão dentro do bunker enquanto guarda vários segredos sobre o estado do mundo exterior.
Esse egoísmo se faz bastante presente no penúltimo episódio da temporada quando finalmente aprendemos o que aconteceu no dia da catástrofe e vemos Cal inicialmente mentir para o país sobre o que está acontecendo enquanto confortavelmente ele e seus aliados esvaziam a Casa Branca para ir ao bunker enquanto abandonam boa parte dos funcionários. Quando as pessoas se dão conta do que está acontecendo, o caos que irrompe quando todos tentam correr para os helicópteros de evacuação e o modo como os agentes do governo matam sem dó os próprios colegas revela como as forças de segurança existem para proteger os privilégios dos poderosos e ricos. Sim, o presidente acaba tendo um lapso de consciência e informa a verdade ao mundo, mas já é tarde demais.
Culpa e responsabilidade
É a culpa que motiva Cal a investigar Sinatra nos seus últimos dias antes de morrer e o que nos faz crer que seu assassinato tem a ver com os segredos do local. James Marsden é eficiente em mostrar como o presidente está afundado em culpa, se refugiando na bebida ou em casos extraconjugais para se manter em um estado de torpor. Flashbacks nos mostram como Cal foi conivente com todo o plano de Sinatra e nunca fez qualquer esforço para tentar salvar o planeta antes da catástrofe em parte por ser um playboy que apreciava sua vida de privilégios. Marsden confere humanidade a Cal sem aliviar suas falhas, nunca perdendo de vista que ele, como os outros que controlam o bunker também fora movido por egoísmo.
Seria fácil tornar Sinatra simplesmente uma autoritária genérica, mas a série consegue dar a ela uma motivação compreensível ao trabalhar seu trauma em ter perdido um dos filhos e como isso a impeliu a preservar o que restou de sua família a qualquer custo, independente do impacto que isso possa ter no mundo. Ainda que movida por amor e pela certeza de que está fazendo a coisa certa, o fato dela não se importar com mais ninguém e dispor dos recursos que tem a torna extremamente perigosa.
Vemos isso ao longo da temporada com seus vários ardis para manter o local sob controle e também quando chegamos ao último episódio e descobrimos como o bunker foi construído, com ela ocultando dos trabalhadores os gases tóxicos que haviam na montanha, condenando todos à morte em prol de seu conforto e salvação. Quando Xavier inicia uma insurreição contra Sinatra e sabota elementos do bunker o modo como a vilã e os membros do conselho fogem para seus refúgios e abandonam o resto da população sem sequer explicar a eles o que está acontecendo deixa claro como a bilionária não liga para ninguém.
O rancor que Sterling K. Brown traz a Xavier em relação ao presidente inicialmente o faz um protagonista dúbio, já que a narrativa deixa a possibilidade de que ele tenha algum envolvimento com a morte de Cal. Aos poucos, porém, entendemos o trauma por trás desse rancor, já que ele quase se sacrificou por Cal e o presidente não fez o que podia pela família de Xavier (mais um reforço que os ricos e poderosos só se importam com os seus) e aderimos a sua frustração com aquele local e seu desejo de enfrentar os poderes estabelecidos.
Caos subterrâneo
É curioso como a fotografia usa constantemente uma iluminação estourada, com uma claridade ofuscante emergindo das janelas em ambientes internos. É algo que soa artificial e que parece pensado para nos lembrar da própria artificialidade daquele lugar, já que o “sol” nada mais é do que um conjunto de grandes refletores. Os temas de egoísmo também se refletem na paisagem sonora, em especial no uso da canção Another Day in Paradise. De início parece que a canção está ali por sua menção a um paraíso, aludindo ao título da série e de como as pessoas se referem ao bunker, mas a letra revela uma conexão maior com as noções de desigualdade e egoísmo.
Os versos, narrados em terceira pessoa, falam de um homem que vê uma mulher em situação de rua lhe pedindo ajuda e a ignora enquanto o narrador pede ao ouvinte que não faça vista grossa ao sofrimento alheio afinal todos nós compartilhamos o mesmo “paraíso” no nosso mundo. O bunker serve justamente como uma representação de como quem tem recursos facilmente ignora as necessidades dos demais e não abre mão do próprio conforto. A versão da banda Joyner para a canção, com vocais sussurrantes e um tom mais melancólico trazem um quê de desesperança resignada ao invés do chamado a ação da versão original de Phil Collins, combinando mais com os temas da série.
Apesar da série ser competente em construir as reviravoltas e revelações a respeito de seus principais mistérios, a trama derrapa um pouco no último episódio, principalmente pelo modo como cria todas as condições para que vários personagens eliminem Sinatra e, ainda assim, não o fazem. Não faz sentido que Xavier não tenha garantido que ela estava morta depois que a bilionária é baleada por outra pessoa. Do mesmo modo, a motivação da agente que atira nela para apenas feri-la ao invés de matá-la não faz o menor sentido já que ela seria mais benéfico para ela se Sinatra morresse e levasse consigo o conhecimento das missões questionáveis que impôs à agente, deixando-a segura. Eu entendo que Sinatra é uma vilã interessante demais para ser eliminada já na primeira temporada, mas do modo como a narrativa se desenvolve não faz sentido que ela tenha saído com vida.
Mesmo que seu final deixe um
pouco a desejar, Paradise é uma grata
surpresa em seu misto de suspense, ficção científica e crítica social, ancorada
por um bom manejo de intriga e personagens bem construídos.
Nota: 8/10
Trailer
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