terça-feira, 22 de abril de 2025

Crítica – Pecadores

 

Análise Crítica – Pecadores

Review – Pecadores
Dirigido por Ryan Coogler (responsável por Pantera Negra, Creed e Fruitvale Station), Pecadores lembra um pouco Um Drink no Inferno (1996) ao contar a história de um grupo de pessoas presas em um bar na beira da estrada tomado por vampiros enquanto eles tentam sobreviver até o amanhecer. As semelhanças, no entanto, ficam só na premissa básica, já que Pecadores tem questões bem diferentes de como pensa os vampiros e nas relações entre seus personagens.

A voz suprema do blues

A narrativa se passa nos Estados Unidos da década de 1930. Os gêmeros Fumaça e Fuligem (ambos Michael B. Jordan) retornam para sua pequena cidade no Mississipi para abrirem um clube de blues usando o dinheiro que ganharam dos gângsteres de Chicago. Eles recrutam o primo Sammie (Miles Catton) para tocar no clube por conta do talento do garoto, apesar do pai de Sammie, um pastor de igreja não querer que ele se envolva com música que não seja gospel. A música tocada por Sammie é tão poderosa que é capaz de acessar o mundo espiritual e chama a atenção do vampiro Remmick (Jack O’Connell), que decide atacar o local para devorar Sammie e absorver seu poder.

A música é aqui um marcador de ancestralidade e Sammie é um talento tão grande que através de sua música é capaz de se conectar ao plano espiritual transcendendo a linearidade do tempo tal qual a concebemos para se integrar a uma temporalidade que funciona como um círculo plano na qual passado e futuro são uma coisa só e todas as temporalidades coexistem. Isso é ilustrado pelo excelente plano-sequência na cena em que o personagem começa a cantar e no meio do clube começam a aparecer pessoas negras tocando guitarra, DJs, pessoas usando máscaras antigas e tocando tambores como se sua música conectasse todos ali à plenitude de suas identidades culturais em tudo que ela foi, é ou virá a ser independente de tempo ou espaço conforme até mesmo as paredes e o teto do lugar parecem se dissolver enquanto a câmera passeia pelo espaço mostrando as confluências entre passado, presente e futuro.

O blues é aqui uma ferramenta de afirmação de identidade e o clube é um espaço em que eles podem se sentir livres para serem tudo que desejam sem medo. Mesmo os gêmeos, gângsteres que pensam em lucrar com o estabelecimento, entendem isso ao aceitarem os vales dos trabalhadores da lavoura como pagamento. Ainda que relutantes e cientes do prejuízo, eles entendem que há ali mais em jogo do que apenas negócios. A narrativa inclusive constrói de maneira muito cuidadosa o que um espaço como aquele pode representar para a comunidade, acompanhando Sammie e os gêmeos ao longo do dia enquanto eles preparam a inauguração, expondo a relação dos gêmeos com a cidade, as ameaças da Ku Klux Klan que estão à espreita.

É por conta dessa construção que o suspense funciona tão bem quando o conflito com os vampiros finalmente explode. Passamos o dia entendendo quem são essas pessoas, o que as move, a conexão de Fumaça com a ex-esposa Annie (Wunmi Mosaku), a de Fuligem com Mary (Hailee Steinfeld), o desejo de Sammie de ir embora para viver como músico e outros laços afetivos que conectam os personagens. Então quando a ameaça chega de fato nos importamos com eles.

Quando chega a escuridão

Confesso que nunca gostei dos trabalhos de Jack O’Connel em filmes como Invencível (2015), Jogo do Dinheiro (2016) ou Back to Black (2024), mas aqui ele impressiona pela quantidade de camadas que traz ao vilão Remmick. Ele é um predador astuto e implacável, que gosta de manipular a mente de suas presas e sente prazer nisso. Alguns momentos de humor do filme inclusive vem das provocações jocosas do vampiro. Remmick, porém, é também uma figura solitária a despeito do séquito de crias vampíricas que traz consigo.

O texto vê a figura do vampiro (não apenas Remmick, mas no geral) não como apenas um ser monstruoso, mas como uma criatura amaldiçoada a uma existência incompleta. Ainda que poderosos e imortais, eles são um simulacro de vida, incapazes de acessarem a plenitude que algo como a música de Sammie é capaz de proporcionar. São seres desconectados do mundo espiritual e, portanto são apenas sombras do que uma pessoa deveria ser, maculados por sua existência amaldiçoada. Não é à toa que Remmick toque antigas canções irlandesas para tentar chamar atenção de Sammie e os demais no bar. Assim como o blues, suas canções são uma tentativa de se conectar a um passado e a uma origem que está distante de si, tanto que ao ouvir Sammie rezar um Pai Nosso Remmick comenta como aquelas palavras foram forçadas ao povo dele (provavelmente celtas ou outras populações nativas da ilha que foram convertidas durante a ocupação romana) assim como foram forçadas ao povo de Sammie.

Claro, apesar de toda essa ponderação de como a desconexão com sua ancestralidade é, em si, uma existência amaldiçoada, incompleta, o filme não deixa de entregar aquilo que esperamos de uma história de vampiros, com mortes, mordidas, sangue e suspense. Inicialmente, quando vampiros começam a se infiltrar no bar, há um clima crescente de paranoia conforme temos a impressão de que qualquer um pode ser um vampiro, algo que culmina na tensa cena em que Annie obriga todos a comerem alho para provar que não são vampiros e cada engasgo ou hesitação na hora de comer é um potencial indicativo de ameaça. É uma cena que evoca O Enigma de Outro Mundo (1982), em especial no momento igualmente paranoico em que os personagens tentam descobrir quem entre eles é a criatura alienígena.

A ação ressalta o quanto os vampiros são criaturas perigosas e traiçoeiras, especialmente Remmick, deixando claro que aqueles que hesitam ou que não sabem como combatê-los se tornam presas fáceis. Como o filme deu o devido tempo para que conhecêssemos os personagens, cada morte, cada sacrifício é sentida com o devido peso, o que é um mérito tanto do texto quando da emoção genuína que as performances de Mosaku ou Jordan em seu papel duplo trazem aos seus personagens.

O final ressalta a força da música de Sammie ao ser seu violão que finalmente consegue ferir Remmick ao mesmo tempo em que lembra como nos lembra que a ameaça dos vampiros era uma alegoria para a ameaça real da Ku Klux Klan que não admite a prosperidade da população e chega ao amanhecer para impor sua violência. Uma ameaça que, ao contrário dos vampiros, os gêmeos tinham se preparado. O filme tem duas cenas pós créditos e a última delas é uma síntese perfeita do arco de Sammie ao mostrar o personagem tocando This Little Light of Mine em ritmo de blues, mesclando enfim os dois elementos formadores de sua musicalidade e identidade, a música gospel e a religiosidade cristã que traz consigo e o blues que evoca a ancestralidade de ritmos da africanos e um modo de cantar ou tocar que reflete a melancolia daquela população afrodiaspórica que quer externar seu sofrimento em forma de música.

Com isso, Pecadores usa de sua trama de vampiros para refletir sobre ancestralidade e desconexão com raízes, ponderando os impactos disso no senso de identidade e em como as pessoas navegam no mundo.

 

Nota: 9/10


Trailer

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