Em certo sentido Garra
de Ferro me lembrou um pouco Foxcatcher(2014) por ser uma biografia sobre lutadores que tentam melhorar de vida,
se envolvem em relações tóxicas com as pessoas responsáveis por seu treino e
tudo acaba em tragédia. A diferença é que Foxcatcherera todo focado em mostrar esse lado sombrio do dito “sonho americano”
enquanto Garra de Ferro parece
incerto do que efetivamente quer, variando entre uma análise crítica da
tragédia da família Von Erich e uma celebração de seu legado no universo da
luta livre.
Focada em Kevin Von Erich (Zac Efron), a narrativa conta a
história real de sua família. O mais velho de quatro irmãos, Kevin é conduzido
pelo pai, Fritz (Holt McCallany), a se tornar um lutador. Fritz conduz a família
com rigidez, criando um ambiente de competição entre os filhos no qual eles não
disputam apenas títulos, mas também a afeição do pai. A exigência de Fritz que
os filhos sejam os melhores os leva a excessos, como uso de anabolizantes,
drogas e uma série de inseguranças. Essa combinação acaba levando a maioria dos
filhos a destinos trágicos.
Em O Perigo da
História Única a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie fala sobre o
período em que estudou nos Estados Unidos e como um professor que teve na
faculdade avaliou um trabalho seu de escrita dizendo que os personagens dela
não soavam genuinamente africanos. O professor dizia que ela criava personagens
de classe média que mais soavam como brancos do norte global como ele do que
como pessoas africanas. Ele ignorava que a escritora vinha de uma família negra
de classe média urbana da Nigéria e Chimamanda usa essa anedota para mostrar
como pessoas de fora da África negra acham que escrever sobre a região
consistiria em falar quase que exclusivamente sobre pobreza, miséria e doença.
A escritora alerta para o perigo dessa história única dizendo que reduzir todas
as experiências e vivências da população negra na África simplificaria toda a
complexidade de um conjunto enorme de pessoas.
Esse debate sobre o que seria uma “arte negra” está no cerne
do filme Ficção Americana. Embora a
trama se passe nos Estados Unidos ele discute questões muito similares à fala
Chimamanda Ngozi Adichie, criticando como a indústria cultural estadunidense
reduz a experiência negra a essa história única. A trama segue Thelonious
“Monk” Ellison (Jeffrey Wright), um escritor talentoso que não consegue vender
seu novo livro para editoras. Sempre que submete a uma editora diferente recebe
elogios por sua escrita, mas é criticado por não falar sobre “a experiência
negra”, uma fala que o personagem considera duplamente problemática.
O brutal processo de travessia do Mar Mediterrâneo por
imigrantes africanos já foi narrado por inúmeras produções europeias e
africanas. O italiano Eu, Capitão é
mais um fazer uma crônica a respeito disso, mas a despeito deu seu realismo
implacável não tem muito a acrescentar a esses discursos.
A trama é focada em Seydou (Seydou Sarr) um jovem senegalês
que está juntando dinheiro com um primo para que ambos consigam atravessar de
barco para a Itália. A mãe de Seydou e outras pessoas ao seu redor tentam
dissuadi-lo dessa atitude, alertando para os perigos dessa travessia, bem como
do fato de que a Europa não é a utopia que os retratos midiáticos fazem
parecer. Ainda assim Seydou decide empreender a viagem e é defrontado com uma
realidade tacanha de violência e exploração.
O filme enquadra a viagem migratória de Seydou e do primo
como um verdadeiro calvário no qual ele não encontra nada além de sofrimento.
Autoridades dos países que ele atravessa os extorquem cobrando subornos para
deixá-los passar por pontos de checagem, atravessadores criminosos os tornam
reféns e tentam cobrar dinheiro de suas famílias e o status ilegal deles em
países como Líbia, que Seydou passa um tempo durante a travessia, os impede até
mesmo de procurar um hospital em caso de necessidade.
A memória do passado orienta nosso presente e informa nossas
decisões do futuro. Sem memória seria difícil até estabelecermos nossa
personalidade. A importância da memória na identidade pessoal e nacional é o
cerne do documentário chileno A Memória
Infinita, que indiretamente também pondera sobre o papel do audiovisual na
preservação da memória.
O filme é centrado no casal Augusto e Paulina. Eles são
casados há 25 anos e há oito Augusto descobriu que está com Alzheimer. Ambos se
preocupam com a degeneração mental de Augusto e com a eventualidade de que ele
não reconheça mais a esposa ou a si mesmo. O documentário acompanha o cotidiano
do casal e das crises causadas pela doença de Augusto e imagens de arquivo que
mostram a vida pregressa tanto de Augusto quanto de Paulina.
É tocante ver o cuidado que Paulina tem com o marido e a
paciência com a qual conversa com ele nos momentos em que ele está mais confuso
e o faz lembrar de quem é e da relação entre eles. É igualmente tocante como
Augusto volta a se apaixonar por Paulina mesmo quando não a reconhece,
revelando como o amor entre dois sobrevive até mesmo ao esquecimento.
Depois de um Duna: Parte Um(2021) que servia como um grande prólogo para o conflito principal
do romance de Frank Herbert, o diretor Denis Villeneuve chega neste Duna: Parte Dois com a expectativa de
entregar um desfecho para todos os conflitos iniciados na primeira parte. É uma
responsabilidade grande considerando que o livro é bastante denso e nunca teve
uma adaptação que fizesse jus a ele.
A narrativa segue no ponto em que o primeiro parou. Paul
(Timothee Chalamet) e sua mãe, Lady Jessica (Rebecca Ferguson) agora vivem
entre os fremen, o povo do deserto. Paul deseja aprender os modos dele para
enfrentar a ocupação dos Harkonnen, mas sua mãe tem planos ainda maiores, usar
uma antiga profecia para convencer os fremen de que Paul é o messias prometido
e assim fazê-lo se tornar o líder dos povos de Arrakis. As coisas se complicam
quando o Barão Harkonnen (Stellan Skarsgard) manda seu cruel sobrinho
Feyd-Rautha (Austin Butler) para atacar os fremen e controlar a extração da
especiaria no planeta.
O diretor Jonathan Glazer já explorou imagens cruéis e
aterrorizantes em filmes como Reencarnação
(2004) e Sob a Pele (2013), então
a ideia dele explorar o nazismo e os campos de concentração me deixou curioso
para ver como ele mostraria os horrores do genocídio perpetrado pelos nazistas.
Diante de um horror tão real, as escolhas de Glazer neste Zona de Interesse, que adapta um romance escrito por Martin Amis,
vão na contramão do que se esperaria conhecendo seus trabalhos anteriores.
O Naturalismo
O diretor opta por nunca mostrar o que acontece em
Auschwitz, ao invés disso focando toda a trama no cotidiano da família do
oficial nazista Rudolf Hoss (Christian Fiedel) e sua família que vivem em uma
luxuosa casa de dois andares ao lado do campo de concentração, separados por um
alto muro. Ao mostrar a normalidade da vida dos nazistas que não apenas moravam
ao lado dos campos como gerenciavam o extermínio o filme torna todo o
extermínio ainda mais inaceitável. Enquanto famílias inteiras morriam nos
campos, Rudolph passeava de canoa com seus filhos em um riacho próximo e sua
esposa, Hedwig (Sandra Huller, de Anatomia de Uma Queda), pensa em que flores plantar no jardim. Essa normalidade
diante do horror me lembrou um pouco o argentino O Clã (2015), de Pablo Trapero, que se passava durante a ditadura
argentina e também contava a história de uma família que vivia uma vida de conforto
às custas do horror que acontecia adjacente à sua residência.
O que muda em um país ao longo de vinte e como os problemas
sociais se transformam ao longo do tempo? Parece ser a partir dessa pergunta
que o documentário Amanhã estrutura
sua narrativa. Ele começa em 2002 filmando três crianças e as trocas entre
elas. Em Belo Horizonte a Barragem Santa Lúcia divide a cidade em duas
realidades distintas: de um lado a favela e de outro um bairro de classe média.
Os habitantes de um lado não cruzam para o outro, construindo uma espécie de
fronteira implícita que revela a separação de classes no Brasil.
Em 2002 o diretor Marcos Pimentel filma três crianças. Julia
e Christian moram no lado pobre da barragem, enquanto Zé Thomaz vive no lado de
classe média. Essas crianças passam alguns dias na casa do outro para
experimentar as realidades diferentes. Vinte anos depois o filme retoma o
contato com esses personagens e usa a vida deles como uma metonímia para as
mudanças no Brasil ao longo dessas duas décadas.
Produção da Prime Video, O
Jogo do Disfarce parece um daqueles filmes que acha que basta combinar
elementos de produções de sucesso para ser bem sucedido. O filme é basicamente
uma mistura de elementos de filmes como A
Honra do Poderoso Prizzi (1985) e True
Lies (1994), lembrando o recente (e igualmente fraco) Plano em Famíliada AppleTV.
A trama é focada em Emma (Kaley Cuoco) e Dave (David
Oyelowo), um casal suburbano aparentemente banal. Querendo apimentar o casamento,
eles resolvem passar uma noite em um hotel chique e brincam de construir
personagens para si. No hotel Emma é acuada pelo assassino internacional Bob
(Bill Nighy) e descobrimos que ela está com a cabeça a prêmio por ser uma
assassina de aluguel extremamente letal. Agora Emma precisa descobrir quem está
atrás dela ao mesmo tempo em que mantem o marido e os filhos em segurança.
O cinema brasileiro tem alguns gêneros que são
constantemente explorados como filão comercial a exemplo de comédias e
biografias. Outros, como o terror, vem até crescendo de produção nos últimos
anos. O suspense, por outro lado, segue como um gênero pouco explorado nas
nossas produções de vocação mais comercial e O Sequestro do Voo 375 vem para mudar isso.
A trama se passa em 1988 e se baseia na história real do
sequestro de um voo da VASP saindo de Minas Gerais. O sequestrador, Nonato
(Jorge Paz) toma o controle do avião e ordena que os pilotos mudem a rota para
Brasília, desejando jogar a aeronave em cima do Palácio do Planalto para matar
o então presidente José Sarney, a quem culpa pelo desemprego e alta inflação
que assola o país. Sob a arma do sequestrador, o piloto Murilo (Danilo
Grangheia) precisa achar um meio de aterrissar em segurança e manter todos
vivos na aeronave.
Acompanhando um recorte bem específico de seu biografado, Ferrari é uma ponderação sobre controle
e a dificuldade em aceitar os limites de nossa capacidade de controlar as
condições ao nosso redor. A narrativa se passa em 1957 e acompanha um Enzo
Ferrari (Adam Driver) cuja montadora está prestes a falir e o casamento com a
esposa Laura (Penelope Cruz) está em frangalhos. Enzo também tem uma amante,
Lina (Shailene Woodley), com quem tem um filho que mantem em segredo de Laura. Para
tentar virar a situação da empresa, Enzo aposta tudo em vencer a corrida Mille
Miglia e para isso aposta no piloto espanhol Alfonso de Portago (Gabriel
Leone).
Desde os primeiros minutos me chamou atenção o modo como o
diretor Michael Mann usa o som. É um filme com pouca música e mesmo quando há
ela é bem discreta, pouco intrusiva. Apesar das tensões constantes no cotidiano
do protagonista, o filme é permeado por ambientes silenciosos. Isto é, exceto
quando Ferrari está nas pistas de corrida e o intenso ronco dos motores domina
a paisagem sonora. Parece haver uma clara intenção de manter o resto do filme
mais discreto em termos de presença de sons para criar um contraste com a
intensidade do ruído dos motores ressaltando a potência desses veículos, não
apenas em termos de seu potencial para corridas, mas também de sua brutal
letalidade quando algo dá errado.
Carros de corrida nos anos de 1950 eram bem menos seguros do
que são hoje e o filme investe as cenas de corrida de um senso de perigo e
velocidade que dá a impressão de que um desastre espera a cada curva. O uso de
câmeras acopladas à frente dos carros ajuda a transmitir a sensação de vertigem
causada pela alta velocidade e como é difícil guiar tão rápido. As cenas são
bastante gráficas ao mostrar o que acontece quando aqueles carros colidem ou
saem do controle em altíssima velocidade. Perto do final, o filme exibe uma dos
acidentes mais chocantes e brutais que me recordo de ter visto no cinema,
mostrando o quão horrível são as consequências quando algo dá errado.
Esse acidente, por sinal, é contraposto com imagens de
outros membros da equipe de Ferrari cruzando a linha de chegada e comemorando a
vitória. É uma escolha que parece ilustrar como o triunfo de uma empresa como a
Ferrari se constrói, entre outras coisas, em cima da morte desses pilotos, como
se fossem animais abatidos em sacrifício para um bem maior. Enzo, apesar de
claramente impactado por essas mortes e disposto a prestar suporte para as
famílias, continua a colocar pilotos em seus carros como se isso fosse a coisa
mais normal do mundo.
A morte de pilotos, algumas vezes em acidentes fortuitos
como o que ocorre no clímax, é só um dos elementos do cotidiano de Enzo que
escapa de seu controle e que o protagonista precisa aceitar as próprias
limitações. Ao longo do filme vemos como Enzo sempre tenta se manter no
controle, apesar de nem todos os seus esforços serem suficientes, como na morte
de seu primeiro filho ou no modo em que sua vontade de controlar todas as
decisões da empresa sem qualquer sócio a colocaram em risco financeiro. Essa
obstinação, intensidade e senso de controle são muito bem construídos na
performance de Adam Driver, cujo corpo parece sempre estar em movimento e a
mente está sempre maquinando um jeito de resolver os problemas que se
apresentam. O roteiro é inteligente o bastante para não romantizar seu
biografado, mostrando Ferrari como um homem vaidoso, egocêntrico, controlador e
mulherengo, além de expor a contradição de seu discurso sobre se preocupar com
os pilotos enquanto lucra com os riscos que eles correm.
O filme também acerta ao evitar tornar Laura Ferrari uma
figura passiva que existe apenas para gravitar em torno do marido. Penélope
Cruz faz de Laura uma mulher em frangalhos por conta da perda do filho e que
agora vive como uma sombra de quem fora por não conseguir lidar com essa perda.
A animosidade que ela tem com Enzo parte tanto das traições que ela sabe que o
marido comete (embora a esse ponto a relação deles seja mais uma parceria de
negócios do que um casamento de fato) como também por culpar Enzo por não ter
conseguido salvar o filho deles, uma culpa que o próprio marido carrega também.
O arco de Laura é o de aceitar essa perda e entender que ela
ou Enzo não tinham controle sobre isso. O casal só chega a alguma medida de
conciliação justamente quando Enzo desiste de manter controle sobre a parte de
Laura na empresa e passa a vê-la mais como uma igual do que alguém a ser
conduzida por ele. De certa forma, os dois lidavam com questões de controle e
só consertam alguns aspectos de sua relação quando abrem mão dessas tentativas
de controle;
Shailene Woodley, por outro lado, é o elo fraco do filme.
Sua Lina existe mais como um ponto de conflito para Enzo e Laura do que como
uma personagem autônoma, falhando em nos fazer entender o que despertou o
interesse de Ferrari em Lina. Além disso, a composição de Woodley se perde em
um sotaque inconstante, no qual às vezes ela tenta um sotaque italiano e em
outros momentos ela parece falar sem sotaque algum, causando algum
estranhamento.
Ainda assim, Ferrari é
uma competente biografia que examina o que move seu protagonista e exibe os
riscos brutais do universo do automobilismo na década de 1950.